terça-feira, 21 de maio de 2024

A Validade da Santa Ceia

Como luteranos, confessamos que o verdadeiro corpo e sangue de Cristo Jesus são verdadeiramente distribuídos e recebidos por aqueles que participam da Santa Ceia ou Eucaristia. Quando se fala a respeito da consagração do pão e do vinho, geralmente se diz que é o uso das palavras da instituição da Ceia que tornam o corpo e sangue de Cristo presentes no pão e no vinho. O próprio Martinho Lutero citou Santo Agostinho em seu Catecismo Maior, que disse: “quando a palavra se une à coisa externa, faz-se o sacramento.” Portanto, como diz Lutero, é a Palavra que faz e distingue esse sacramento.

Entretanto, embora a Palavra seja o cerne e indispensável para que se tenha o Sacramento do Altar, a teologia luterana não para por aí. Existem mais coisas que precisam ser levadas em consideração para que, de fato, se tenha o corpo e o sangue de Cristo Jesus presentes na Santa Ceia. Esses outros fatores precisam ser seriamente levados em consideração, caso contrário, a teologia de Martinho Lutero a respeito da Ceia seria inconsistente, visto que o próprio reformador nega que exista Santa Ceia em denominações que falam de uma suposta presença espiritual ou simbólica do corpo e sangue de Cristo na Eucaristia. Diante disso, e como observaremos mais adiante, na teologia luterana não é apenas a Palavra que torna os elementos em sacramento.

Em seus debates a respeito da Ceia que pertence ao Senhor, Martinho Lutero procurava manter a simplicidade e seriedade das próprias palavras de Cristo Jesus. Em suas discussões, Lutero não apontava para si mesmo ou para seus argumentos, mas para aquilo que o próprio Jesus disse a respeito de sua própria sagrada instituição. Em seu debate de 1529 com Zwinglio e Oecolampadius que defendiam uma presença simbólica de Jesus na Ceia, Lutero critica o fato de seus adversários estarem elevando a razão acima da revelação. Ele disse: 

“(1) eles desejam provar seus casos por meio de conclusões lógicas; (2) eles afirmam que o corpo não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e que ele não pode ser infinito; (3) eles apelam para a razão natural. Eu não pergunto como Cristo pode ser Deus e homem e como suas naturezas podem estar unidas, pois Deus é capaz de fazer mais do que qualquer coisa que podemos imaginar. Devemos nos submeter à Palavra de Deus.”
Ele ainda responde a Zwinglio: 

“Eu não estou debatendo o ‘é,’ mas estou satisfeito porque Cristo o disse. Até mesmo o diabo é impotente diante dessas palavras [de Jesus]. Eu não quero aderir a essas palavras em minha própria autoridade, mas na autoridade e ordem de Cristo.” 

Anteriormente a esse debate, em 1523, Lutero já havia considerado uma violência e zombaria à Palavra de Jesus da parte daqueles que procuravam distorcer o sentido do texto pela própria vontade.

Esse pensamento de Zwinglio e Oecolampadius que foi condenado por Martinho Lutero, posteriormente foi desenvolvido por João Calvino que, apensar de falar de uma presença real e espiritual de Cristo na Ceia, sua visão é completamente contrária ao ensinamento bíblico. Para os calvinistas, o participar do corpo e do sangue de Jesus não está relacionado ao distribuir e comer do pão e do vinho, mas acontece de forma espiritual, desconecto dos elementos. Em contrapartida, as Palavras de Jesus são extremamente claras: “tomem, comam; isto é o meu corpo... bebam todos dele; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança” (Mt 26.26-27). Portanto, comer do pão consagrado, é comer do verdadeiro corpo de Cristo, beber do vinho consagrado, é beber do verdadeiro sangue de Cristo. As confissões luteranas também falam num sentido espiritual da Santa Ceia, mas para se evitar a ideia de um comer e beber cafarnaítico, o que é completamente distinto da visão espiritual de Calvino.

Além da teologia luterana rejeitar a noção simbólica e espiritual do corpo e sangue de Cristo na Ceia, Martinho Lutero também criticou alguns abusos que também estavam acontecendo entre os romanistas. Isso se deu por causa do uso de filosofias para se explicar e definir questões de fé. Por causa dessas filosofias, ao contrário da instituição de Jesus, o cálice já não mais era oferecido aos cristãos comuns. Além disso, em 1520, Lutero criticou o uso da filosofia aristotélica que era utilizada pelos romanistas para se explicar o grande milagre do Sacramento do Altar. Outro grande abuso que acontecia entre os romanistas daquela época, era o pagamento por missas privadas que eram, inclusive, realizadas em favor de pessoas já falecidas. Outra distorção que havia, era o considerar da missa um sacrifício propiciatório que era oferecido pelo sacerdote a Deus.

Diante de todos esses pensamentos, filosofias e abusos que aconteciam com a Ceia do Senhor, Lutero, de forma geral, escreveu em 1533: 

“Em resumo, os ofícios e os sacramentos não nos pertencem, mas a Cristo, pois ele ordenou tudo isso e os deixou como legado na igreja para ser exercido e usado até o fim do mundo; e ele não mente, nem nos engana. Portanto, não podemos tirar nada disso, mas devemos agir em acordo com a sua ordenança e cumpri-los. Contudo, se os alterarmos ou melhorarmos, então eles serão nada e Cristo não estará mais presente, nem sua ordenança.” 

Lutero também comenta:

“Além disso, eles aboliram e destruíram o [santo] ofício [do ministério]; pois nenhum consagrado sacerdote privado foi autorizado a administrar o sacramento à comunidade ou a pregar, como exigem o mandamento e a instituição de Cristo; em vez disso, eles permanecem ali e, cometendo graves pecados, são obrigados a realizar a celebração do sacramento de forma contrária à instituição e ordenança de Cristo – se é que não estão recebendo apenas pão e vinho ao invés do sacramento... há um perigo de que nas missas privadas não exista sacramento, mas simplesmente pão e vinho.” 

Além disso, diante do falso ensino e prática das missas privadas, Lutero condena o fato de os romanistas se utilizarem de uma instituição de Cristo para fazerem uma instituição que é própria, particular – uma verdadeira afronta a Cristo Jesus.

A respeito daqueles que negavam o corpo e sangue de Cristo no pão e no vinho, Lutero escreveu em 1527: 

“Agora, os fanáticos acreditam que nada além de pão e vinho estão presentes, portanto, certamente é assim. Eles têm o que acreditam e, portanto, não comem nada além de pão e vinho, e [não] participam do corpo do Senhor nem espiritualmente nem fisicamente. É muito bom e útil que aquilo que possuímos não seja espalhado entre os indignos, mas mantido santo e puro apenas entre os humildes.” 

Nesse mesmo texto, fica evidente que Lutero não aceitava a participação de pessoas que afrontaram e negaram as claras palavras de Cristo numa mesma comunhão de altar.

Em 1528 Lutero também escreveu: 

“Da mesma forma também digo e confesso que no sacramento do altar o verdadeiro corpo e sangue de Cristo são oralmente comidos e bebidos no pão e no vinho, mesmo que o sacerdote que os distribui ou aqueles que os recebem não acreditem ou façam mau uso do sacramento. Não se baseia na crença ou na incredulidade do homem, mas na Palavra e na ordenança de Deus – a menos que primeiro mudem a Palavra e a ordenança de Deus e as interpretem mal, como fazem os inimigos do sacramento no tempo presente. Na verdade, eles têm apenas pão e vinho, pois também não possuem as palavras e a ordenança instituída por Deus, mas a perverteram e a mudaram de acordo com sua própria imaginação.”

Portanto, para Lutero, essas alterações e maus usos do Sacramento do Altar não apenas desprezam a própria instituição de Cristo, mas também desprezam o propósito da Santa Ceia que é conceder o perdão e a verdadeira vida no corpo e sangue de Cristo Jesus.

Embora já comece a se tornar claro que não é apenas o simples uso das Palavras que tornam o simples pão e vinho no corpo e sangue de Cristo, precisamos eliminar alguns pontos que podem ser motivo de controvérsias quando mal-entendidos. Na citação de Lutero que ouvimos a pouco, Lutero diz que o corpo e o sangue de Cristo são oralmente comidos e bebidos. Essa linguagem “oralmente” não quer dizer que o pão e o vinho se tornam corpo e sangue quando são colocados na boca, o que é chamado de recepcionismo. O tornar do pão e vinho no corpo e no sangue de Cristo não é dependente do ato de comer e beber. Quando Lutero e a teologia luterana fala em “oralmente,” a teologia luterana quer evitar com isso qualquer compreensão de um recebimento simbólico ou espiritual do corpo e sangue de Cristo no ato de comer e beber. Ou seja, quando se come e bebe, se recebe, de fato, o corpo e o sangue de Cristo no próprio comer e beber dos elementos, não separado deles. Além de o recepcionismo mudar completamente o foco da validade do sacramento, as confissões luteranas rejeitam o recepcionismo quando claramente dizem que o corpo e o sangue são também distribuídos, e a distribuição precede a recepção oral. Isso claramente se reflete em nossa liturgia, quando cantamos, antes das palavras da instituição, “bendito aquele que vem em nome do Senhor,” e posteriormente, depois da consagração, cantamos “cordeiro divino morto pelo pecador” que não está no céu ou espiritualmente em nossos corações, mas salvificamente e sacrificialmente sobre o altar, no pão e no vinho.

Não dependendo da recepção oral, a validade do sacramento também não depende da fé do indivíduo que recebe o sacramento, muito menos de seus sentimentos sobre isso. O texto de Paulo em 1 Coríntios 11, claramente demonstra que pessoas estavam participando indevidamente do corpo e do sangue de Cristo Jesus, e por isso, muitos estavam adoecendo e até mesmo morrendo, pois recebiam a Ceia para juízo. Além disso, a Declaração Sólida esclarece: “Ora, o que faz o sacramento não é a nossa fé, mas unicamente a palavra e instituição verdadeira de nosso onipotente Deus e Salvador Jesus Cristo, a qual sempre é e permanece eficaz na cristandade, não sendo derrogada ou tornada sem força pela dignidade ou indignidade do ministro, ou pela incredulidade de quem a recebe” (DS VII 89). Também os Artigos de Esmalcade dizem: “Cremos que o pão e vinho na ceia são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo, e que isto é entregue e recebido não somente por cristãos piedosos, mas também por cristãos ímpios.”

Assim como o sacramento do altar não depende daquele que o recebe, a validade do sacramento também não depende do ministro que o consagra e entrega. Jesus, falando ao povo a respeito dos escribas e fariseus em Mateus 23.2-3, disse: “façam e observem tudo que eles disserem a vocês, mas não os imitem em suas obras; porque dizem e não fazem.” Com isso, Jesus demonstra que os escribas e fariseus hipócritas não anularam a validade da palavra de Deus quando a leram e a transmitiram de forma fiel. Da mesma forma, os sacramentos permanecem válidos mesmo quando administrados por falsos mestres. A Declaração Sólida esclarece: 

“ainda que um patife tome ou dê o sacramento, recebe o sacramento verdadeiro, isto é, o corpo e o sangue de Cristo, tanto quanto aquele que o faz de maneira mais digna. Pois o sacramento não se funda na santidade de homens, mas sobre a palavra de Deus. E assim como nenhum santo na terra, nem mesmo um anjo no céu, pode transformar o pão e o vinho em corpo e sangue de Cristo, da mesma forma, ninguém pode modificar ou transformar o sacramento, ainda que haja abuso dele.” 

Entretanto, como já observamos, quando a palavra ou os sacramentos são ensinados e administrados sob preceitos e alterações humanas, eles se tornam inválidos e ineficazes (cf. Mt 15.6).

Embora a fé pessoal ou a fé do ministro não ponham em risco a validade do sacramento, é necessário a existência de uma fé verdadeira para que se receba o corpo e o sangue de Cristo para proveito e não para juízo. No Catecismo Maior Lutero escreve: 

“Agora, cumpre vejamos qual a pessoa que recebe esse poder e proveito... aquele que crê conforme rezam as palavras e o que trazem. Pois não são ditas ou proclamadas a pedras e paus, mas àqueles que as ouvem... E como oferece e promete perdão dos pecados, não pode ser recebido de outra maneira senão pela fé. Essa fé exige-a ele mesmo na palavra, ao dizer: “dado por vós” e “derramado por vós.”

Também erram na questão da validade do sacramento aqueles que procuram limitar a consagração dos elementos ao tempo em que a Ceia é celebrada. Dizer que após a celebração os elementos novamente voltam a ser simples pão e simples vinho, é declarar e defender algo que não possui qualquer respaldo bíblico, mas é uma conclusão baseada apenas em opiniões e pensamentos humanos – o que é um grande perigo e erro. Mesmo havendo muitos cálices e muitos pães, o texto bíblico claramente diz que Jesus abençoou apenas um pão e apenas um cálice, e deles deu aos seus discípulos. Em momento algum algo é dito a respeito de uma suposta desconsagração dos elementos, pelo contrário, desde o AT, as coisas que foram consagradas não deveriam ser mais unidas com coisas comuns ou impuras, pois isso caracterizaria um desprezo e profanação das coisas santas de Deus. As sagradas instituições são realmente sagradas, é necessária tratá-las com máxima reverência e cuidado.

Ainda sobre essa questão, alguns luteranos querem limitar a consagração dos elementos ao uso deles, ou seja, terminou o culto, terminou a consagração. Acontece que quanto a teologia luterana e o próprio Lutero falam do uso do sacramento, esse uso não diz respeito ao início e fim da cerimônia, mas diz respeito ao seu uso correto diante de invenções que foram criadas pelo ser humano. Ou seja, o uso do sacramento é para ser comido e bebido por cristãos na reunião cristã – no culto. O correto uso do sacramento não é para procissões, missas privadas, para ser guardado ou para qualquer outra coisa que não esteja em acordo com o uso instituído pelo próprio Jesus. Portanto, é um erro utilizar a noção confessional de “uso” do sacramento para limitar a sacralidade dos elementos ao momento da comunhão/culto.

Por fim, diante de tudo o que foi exposto, podemos resumir dizendo que não é apenas o simples uso das palavras da instituição que fazem do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo. Conforme evidente em Lutero e nas Confissões Luteranas, é necessário e indispensável não apenas as palavras da instituição, mas o celebrar da Ceia conforme a instituição, o uso e ordenança de Cristo Jesus, sem inserções e deturpações humanas. Diante disso, o próprio Deus, em seu imensurável poder e palavra performativa, concede a seus filhos tão grande e espantosa bênção da salvação – o próprio corpo e o próprio sangue de seu próprio Filho, que se entregou para pagar pelos nossos pecados. A Santa Ceia pertence a ele, ele a pregara, ele nos convida – é por isso que é chamada de Ceia do Senhor.

A Declaração Sólida resume: 

“a verdadeira presença do corpo e sangue de Cristo na ceia não é efetuada pela palavra ou obra de homem algum, quer seja o mérito ou a recitação do ministro, quer o comer e beber ou a fé dos comungantes. Tudo isso, ao contrário, deve ser atribuído unicamente à virtude do onipotente Deus e à palavra, instituição e ordenação de nosso Senhor Jesus Cristo... em todo lugar onde a Ceia é celebrada segundo a instituição de Cristo e suas palavras são usadas, o corpo e o sangue de Cristo verdadeiramente estão presentes, são distribuídos e recebidos, por virtude de potência daquelas palavras que Cristo pronunciou por ocasião da primeira ceia... O próprio Cristo prepara e abençoa esta mesa” (DS VII 74-76).

 + Rev. Jhones Koehler

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