O devocionário Café com Deus Pai virou uma verdadeira modinha. Muitos, inclusive luteranos, têm buscado adquiri-lo para suas devoções pessoais, acreditando que encontrarão ali uma reflexão diária edificante. No entanto, ele contém muitos erros, especialmente para um cristão luterano que busca um devocional centrado em Cristo e fundamentado nas Escrituras. A própria devoção de hoje, por exemplo, que vi nos stories de uma pessoa, deixa isso muito evidente.
A devoção de hoje, 18/02/25, intitulada “Um relacionamento sincero”, é baseada em Marcos 7.6 na versão NVI: “Ele respondeu: ‘Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim’.”
O devocionário comenta o texto da seguinte maneira:
“A passagem que abordamos revela a crítica de Jesus à hipocrisia dos fariseus, que, em vez de orientarem as pessoas a se aproximarem de Deus, impunham regras rigorosas, criando barreiras e empecilhos, acabando por afastar as pessoas do Pai. É crucial diferenciarmos religiosidade de espiritualidade.
Enquanto a espiritualidade representa uma conexão genuína com Deus, a religiosidade tende a criar rótulos e padrões para essa conexão, muitas vezes resultando em uma separação, em vez de facilitar o relacionamento com Deus. Sempre que introduzimos rituais, regras ou padrões humanos como condição para a proximidade com Deus, construímos um sistema legalista que complica o relacionamento em vez de facilitá-lo.Devemos compreender que a religiosidade é prejudicial nesse contexto, pois impõe rótulos e padrões, enquanto a Bíblia enfatiza a necessidade de um coração sincero para se relacionar com Deus. Diariamente, é essencial avaliar nosso vínculo com o Pai, pois a hipocrisia, que consiste em falar sem praticar, pode minar a autenticidade desse relacionamento.Deus Pai deseja uma conexão pura e sincera conosco. Como uma conversa de pai e filho, sem a necessidade de rituais ou grandes formalidades, assim devemos ser com ele. Convido você a refletir sobre seu relacionamento com o Pai, pois muitas vezes, sem perceber, criamos barreiras e introduzimos formalidades onde deveria imperar o amor e a sinceridade. Ele está chamando você para uma conexão real e sincera, que supera toda e qualquer barreira. Aproveite este momento para conversar com Deus, abrindo seu coração, pois ele está à sua espera. Deus deseja tomar café com você.”
À primeira vista, essa devoção pode parecer piedosa e inspiradora. No entanto, quando analisada à luz da doutrina cristã confessional, percebemos sérios problemas teológicos que tornam esse devocionário perigoso para quem deseja crescer na fé verdadeira.
O primeiro problema é a tentativa de criar uma oposição entre religiosidade e espiritualidade. O devocionário sugere que a religiosidade impõe barreiras entre Deus e o homem, enquanto a espiritualidade é uma conexão livre e genuína. Esse discurso soa agradável ao ouvido moderno, mas é um erro teológico grave. A Escritura não faz essa separação artificial. A verdadeira fé, concedida por Deus, manifesta-se tanto internamente quanto externamente. Jesus não aboliu as práticas externas da fé, mas as corrigiu e restaurou conforme a vontade de Deus. A vida devocional, o culto, a oração, os sacramentos e o ensino da Palavra são parte essencial da vida cristã. A fé nunca é apenas um sentimento ou uma experiência interna, mas se expressa de forma concreta na vida do cristão. Quando o devocionário sugere que qualquer estrutura ou liturgia afasta de Deus, ele distorce a verdade bíblica e despreza os meios pelos quais Deus escolheu se revelar e agir.
A devoção também afirma que “sempre que introduzimos rituais, regras ou padrões humanos como condição para a proximidade com Deus, construímos um sistema legalista que complica o relacionamento em vez de facilitá-lo.” Esse tipo de pensamento reflete um antinomianismo, que rejeita qualquer forma de ordem e disciplina na fé cristã. No entanto, Deus estabeleceu ordem em sua Igreja. O próprio Jesus instituiu o Batismo e a Santa Ceia e participou de cultos litúrgicos. A Igreja Primitiva manteve uma ordem de culto (Atos 2.42), e o culto cristão sempre foi marcado pela proclamação da Palavra e pelo uso dos sacramentos.
A liturgia luterana, por exemplo, longe de ser uma barreira, é uma dádiva que nos aproxima de Cristo. O culto não é uma criação humana para alcançar Deus, mas sim o Serviço Divino (Gottesdienst), ou seja, é Deus que serve a nós! Nele, Cristo vem a nós da maneira mais amorosa, mais íntima, para nos socorrer, nos perdoar e nos fortalecer através dos meios da graça. Quando nos reunimos em culto, não estamos simplesmente participando de uma cerimônia religiosa qualquer, mas sendo encontrados por Cristo na Palavra, no perdão dos pecados, no Batismo e na Santa Ceia.
O primeiro passo que devemos dar em nossa vida devocional, religiosa, espiritual ou qualquer outro termo que se queira usar, é reconhecer que somos pecadores, estamos perdidos e necessitamos de resgate. A obra de Cristo e a verdadeira devoção pressupõem que estamos sempre em erro e pecado. Quando perdemos essa perspectiva e a noção do peso do nosso pecado, nos tornamos entusiastas e começamos a pensar que podemos atingir a santidade por conta própria.
Essa ideia de que Deus se agrada apenas da sinceridade interna, sem considerar o culto e as práticas externas, entra em contradição com a Escritura. O Salmo 51.17 diz: “Sacrifício agradável a Deus é o espírito quebrantado; coração quebrantado e contrito, não o desprezarás, ó Deus.” Essa mensagem se alinha com as palavras de Jesus em Marcos 7.6-7, onde ele repreende aqueles que honram a Deus apenas com os lábios, mas têm um coração distante d’Ele.
Se fizermos uma análise, veremos que a lógica por trás das devoções do Café com Deus Pai é a de que não precisamos de resgate do pecado, mas apenas de uma correção na experiência da fé. Isso distorce completamente o Evangelho. Além disso, é impossível acessar o Pai sem Cristo, como ele mesmo declarou: “Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14.6).
A verdadeira espiritualidade não está em uma experiência emocional subjetiva ou em um relacionamento sem estrutura com Deus, mas sim naquilo que ele mesmo instituiu para nos alimentar espiritualmente. A fé cristã, conforme revelada na Escritura, engloba tanto a crença (fides qua) quanto sua expressão externa (fides quae), e ambas caminham juntas sob a direção da Palavra de Deus. O culto cristão, conforme a tradição luterana, não é uma tentativa humana de nos aproximarmos de Deus por meio de rituais vazios, mas sim a resposta de fé ao chamado de Deus para recebermos seus dons. No culto, Deus fala e nós respondemos; ele concede perdão e nós o recebemos; somos alimentados com o Corpo e o Sangue de Cristo e fortalecidos na fé. Desprezar essa realidade e reduzir a vida cristã a um relacionamento informal e sem mediação sacramental é ignorar a forma como Deus age em sua Igreja.
Outro erro grave da devoção é a omissão completa da obra redentora de Cristo. O foco é totalmente colocado no coração humano e na necessidade de um relacionamento sincero com Deus, mas não há qualquer menção à cruz, ao perdão dos pecados ou à justificação pela fé. Isso transforma o devocionário em um instrumento de moralismo disfarçado de espiritualidade, levando as pessoas a pensarem que podem se achegar a Deus apenas por um esforço sincero, em vez de dependerem exclusivamente da obra salvífica de Cristo.
A pergunta essencial que essa devoção ignora é: como podemos ter um coração sincero e puro diante de Deus? A resposta não está em nossa própria sinceridade, mas unicamente na justiça de Cristo, recebida pela fé (Romanos 3.28). Esse é o coração do Evangelho luterano. A Confissão de Augsburgo (CA IV) afirma de maneira clara:
“Ensina-se também entre nós que os homens não podem ser justificados diante de Deus por seus próprios méritos, obras ou satisfações, mas são justificados gratuitamente por causa de Cristo, mediante a fé, quando creem que são recebidos em graça e que os seus pecados são perdoados por causa de Cristo, o qual, pela sua morte, satisfez pelos nossos pecados. Deus imputa esta fé como justiça diante de si.”(CA IV, 1-3)
Portanto, o erro da devoção está em desviar o olhar de Cristo crucificado e ressurreto para a sinceridade e disposição do coração humano, algo que as Confissões Luteranas refutam com veemência. A Apologia da Confissão de Augsburgo (Apologia IV, 63-64) explica:
“Assim, a fé é o verdadeiro culto divino, pois recebe os benefícios oferecidos por Deus. O culto levítico não justificava, e as obras das leis morais não justificam sem Cristo. Por isso, no Novo Testamento, o verdadeiro culto que justifica é a fé.”
Sem a cruz, qualquer conversa sobre relacionamento com Deus se torna vazia e ineficaz, pois a verdadeira comunhão com Deus não se baseia em nossos sentimentos ou esforços, mas na graça de Cristo que nos é dada nos meios da graça. É pela Palavra, pelo Batismo e pela Santa Ceia que Cristo nos alcança e nos concede um relacionamento verdadeiro e salvador com o Pai. Sem essa centralidade na justificação pela fé, o devocionário propaga um cristianismo antropocêntrico, em que o ser humano tenta encontrar Deus por meio de sua sinceridade, em vez de descansar na certeza da salvação em Cristo.
Além disso, quando não há ordem e a Lei vindas de Deus, há sempre um moralismo entusiasta. Se não é Deus que me diz o que fazer, então sou eu que invento coisas para agradá-lo. Esse é o problema do farisaísmo. Os fariseus não tinham mais profetas para corrigi-los e, em vez de ouvirem a Palavra de Deus na Escritura, criaram leis da própria cabeça para agradar a Deus e "proteger" a fé. Isso não é diferente do que acontece em muitos meios religiosos contemporâneos que rejeitam a ordem e os meios estabelecidos por Deus para a comunhão com Ele, substituindo-os por experiências subjetivas e normas humanas. Como diz a Confissão de Augsburgo, no Artigo XXVIII, sobre o Poder da Igreja:
“Portanto, os bispos não devem instituir ou exigir tradições contrárias ao evangelho. Como está escrito: 'Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos humanos' (Mt 15.9). E: 'Por que tentais a Deus, impondo um jugo ao pescoço dos discípulos?' (At 15.10).” (CA XXVIII, 36-37)
Isso significa que não devemos criar nossas próprias regras para nos aproximarmos de Deus, mas devemos nos apegar aos meios da graça, onde Deus mesmo nos vem ao encontro. Quando se abandona essa verdade, há sempre uma tendência ao legalismo e ao moralismo, que busca estabelecer um relacionamento com Deus baseado em nossa sinceridade e desempenho pessoal, em vez da graça e da obra consumada de Cristo.
Por fim, o erro mais perigoso desse devocionário é a sua falta de clareza sobre quem é o Deus verdadeiro. Em momento algum o devocionário menciona o Filho e o Espírito Santo. Ele se refere apenas a “Deus Pai”, como se ele estivesse separado das demais Pessoas da Trindade. Isso pode levar a uma visão equivocada de Deus e até a um entendimento modalista da fé cristã. O Deus verdadeiro é Pai, Filho e Espírito Santo, e qualquer devoção que ignore essa realidade essencial corre o risco de apresentar um falso deus.
Diante de tudo isso, fica evidente que o Café com Deus Pai não é um devocionário adequado para um cristão luterano. Ele contém uma visão equivocada sobre a fé, minimiza a importância da doutrina e da liturgia, omite a obra redentora de Cristo e apresenta um conceito perigoso e reducionista de Deus. Para um crescimento espiritual saudável, é essencial buscar devocionários que sejam cristocêntricos, enraizados na Palavra de Deus e que nos conduzam aos meios da graça, pois é ali que Cristo verdadeiramente nos encontra.
Felizmente, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) disponibiliza um excelente devocionário, produzido pela Hora Luterana, chamado Cinco Minutos com Jesus. Esse devocionário diário oferece reflexões curtas, mas profundamente enraizadas na Escritura, sempre apontando para Cristo como nosso Redentor. Além disso, na Editora Concórdia, também está disponível o devocionário “Segue-me", que traz ótimas devoções baseadas no ano litúrgico da Igreja, ajudando os fiéis a acompanharem o calendário e os ensinamentos da fé cristã de forma sólida e edificante. Ambos são excelentes opções para quem deseja um devocional realmente bíblico e centrado na verdadeira fé cristã, sem cair em modismos ou em espiritualidades vazias.
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