quarta-feira, 29 de maio de 2024

Meios da Graça

O que é um “meio da graça”?

Os meios da graça, como o próprio nome sugere, são os meios, segundo as Escrituras, pelos quais a graça nos alcança ou é mediada.

 Mas, o que seria essa “graça”?

Em Número 6 lemos: “o Senhor os abençoe e os guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre vocês e tenha misericórdia de vocês; o Senhor sobre vocês levante o seu rosto e lhes dê a paz” (Números 6.24-26). Nas palavras da bênção Aarônica, Deus faz resplandecer o seu rosto sobre nós e nos concede a paz. Isso é a graça. A graça é a paz de Deus, o fim da inimizade entre Deus e o homem. Ela perdoa o homem e seus pecados. O fundamento deste perdão, desta paz, é o sacrifício substitutivo de Cristo na cruz. Através da sua morte há perdão dos pecados. Através da sua morte, há paz.

Assim, os meios da graça são os canais pelos quais o favor e a paz de Deus chegam até nós. Ou, dito de outra forma, são as maneiras pelas quais estamos conectados com a obra de Cristo.

Mas não podemos acabar encerrar esta discussão aqui. Perguntas podem surgir quando falamos sobre os meios da graça: como a graça chega até nós segundo as Escrituras? O que nos traz o perdão dos pecados e a reconciliação com Deus? O que nos conecta com a Palavra de Cristo e nos salva do julgamento de Deus?

 Os meios da graça

Ao examinarmos as Escrituras, descobrimos que certas ações se destacam como salvíficas. Por exemplo, o batismo, mencionado 1Pedro 3.21 diz: “o batismo, que corresponde a isso, agora também salva vocês”. Portanto, o batismo é salvífico. Em Tito 3.5, Paulo escreve: “ele nos salvou, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia. Ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo”. Assim, o batismo é um dos atos através dos quais Deus nos salva e perdoa nossos pecados.

A Ceia do Senhor também é um desses meios. Nas Palavras da Instituição, lemos em Mateus 26.28 onde Jesus diz: “porque isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”. Além disso, Paulo cita a pregação como um canal de graça: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Romanos 1.16).

Portanto, temos o batismo, a Ceia do Senhor e a pregação do Evangelho como meios pelos quais recebemos o perdão dos pecados, a paz e a salvação. Os “meios da graça” é um termo que agrupa essas três ações diferentes em uma categoria. Embora diferentes – batismo, Ceia do Senhor, pregação – eles são unidos pelo que realizam e pelo que concedem.

Sacramentos

O termo sacramento é não-bíblico. A palavra vem do latim e significa literalmente “coisas sagradas”. Foi usado por Jerônimo na Vulgata, a versão latina da Bíblia usada pela Igreja Católica, para traduzir a palavra grega μυστήριον (mistério), uma palavra para as verdades salvadoras da fé cristã. Com o tempo, a Igreja passou a usá-lo para as formas como Deus dá sua graça aos seus filhos.

No curso da história, o Catolicismo Romano definiu sete sacramentos: Batismo, Crisma, Ceia do Senhor, Ordenação, Confissão, Casamento e Extrema-unção. Esta definição foi formalmente estabelecida no século XV no Concílio de Ferrara-Florência (1438-1445), em resposta aos armênios. Na Igreja Ortodoxa, embora a maioria conte sete sacramentos, existem variações no número reconhecido.

Analisando estes sete sacramentos, notamos que nem todos possuem um objeto material. A Igreja Católica Romana, então, argumenta que o elemento pode ser outra coisa. Por exemplo, na confissão, o elemento seria a contrição do penitente, uma interpretação peculiar de “elemento”. Estes sete sacramentos permanecem como o ensinamento oficial da Igreja Católica Romana, sendo um ponto de divergência durante a Reforma.

Com a reavaliação de muitos conceitos na Igreja Católica Romana, a questão sobre a natureza e a quantidade de sacramentos também foi revisitada. Lutero usou critérios tradicionais para definir um sacramento: a promessa da graça, a instituição de Cristo e um elemento visível. Com esses critérios, ele examinou os sete sacramentos e concluiu que realmente existem apenas dois, possivelmente três, sacramentos. Ele rejeitou o Casamento, a Ordenação, a Extrema-unção e a Crisma como sacramentos, pois não havia instituição de Cristo, palavras ditas por Cristo, nem promessas de graça associadas a eles.

Quantos sacramentos há?

É fácil identificar o batismo e a Ceia do Senhor como sacramentos, pois eles possuem a instituição de Cristo, a promessa da graça e um elemento. Mas e quanto à confissão e absolvição? Esta questão foi mais difícil. Os luteranos na época de Lutero, e mesmo depois, hesitaram um pouco. Por um lado, há a promessa da graça e a instituição de Cristo, que comissionou seus apóstolos: “se de alguns vocês perdoarem os pecados, são-lhes perdoados; mas, se os retiverem, são retidos” (Jo 20.23). Porém, não há um elemento visível. Lutero, no Cativeiro Babilônico, disse que talvez a confissão e absolvição pudessem ser consideradas um sacramento. Assim ele afirma:

 

Não obstante, parece que se denominam de sacramentos propriamente aqueles que foram prometidos com sinais anexos. Os demais, que não estão unidos a sinais, são meras promessas. Disso resulta que, se queremos falar com rigor, existem somente dois sacramentos na Igreja de Deus: o Batismo e o Pão. Vemos que somente neles foi instituído divinamente o sinal e prometido o perdão dos pecados. O Sacramento da Penitência, que acrescentei a esses dois, carece de sinal visível e divinamente instituído. [...] Mas também os escolásticos não podem asseverar que sua definição possa corresponder à Penitência. Eles próprios conferem um sinal visível ao sacramento, que dá aos sentidos uma forma daquela coisa que obra invisivelmente. Ora, a Penitência ou Absolvição não tem sinal. Por isso, eles próprios, por sua própria definição, vêem-se forçados ou a negar que a Penitência é sacramento e a diminuir, assim, o número dos sacramentos, ou a dar-lhes outra definição.[1]

 

No entanto, a Apologia da Confissão de Augsburgo, artigo XIII discute o que é um sacramento de maneira um pouco diferente:

 

“A respeito do uso dos sacramentos se ensina que foram instituídos não só para ser sinais que permitem reconhecer exteriormente os cristãos, mas também para ser sinais e testemunhos da vontade divina para conosco, visando a despertar e a fortalecer nossa fé para com eles, razão pela qual também exigem fé e então são usados corretamente quando os recebemos com fé e fortalecemos a fé com eles”.[2]

 

Aqui, sacramento é definido como um rito com uma promessa, enfatizando a ação em vez do elemento. Portanto, poderia se incluir a confissão e absolvição como sacramento e até considerar a ordenação[3] como tal.

 A Apologia da Confissão, no mesmo artigo, afirma:

 

“Autenticamente sacramentos são, portanto, o batismo, a ceia do Senhor e a absolvição, que é o sacramento da penitência. Pois esses ritos têm o mandamento de Deus e a promessa da graça, que é própria do Novo Testamento. Pois os corações devem afirmar com convicção que Deus verdadeiramente nos perdoa por causa de Cristo quando somos batizados, quando comemos o corpo de Cristo, quando somos absolvidos”.[4]

 

E então, surge uma questão recorrente entre os luteranos é: Quantos sacramentos existem? Debater essa questão exige primeiro definir o que é um sacramento. Se definirmos como um elemento relacionado à promessa de graça instituída por Cristo, então a ordenação e a confissão e absolvição não são sacramentos. Contudo, isso não diminui sua importância ou o fato de que conferem graça e perdão dos pecados. O termo “sacramento” é usado para agrupar atos especiais e sagrados.

O casamento, por exemplo, é sagrado não porque seja instituído por Cristo ou porque ofereça perdão dos pecados ao se casar, mas porque Deus o instituiu e há bênçãos nessa união. A santidade do casamento não é diminuída ao não chamá-lo de sacramento.

Mesmo os dogmáticos reconhecem que é fútil discutir quantos sacramentos existem, já que não é um termo bíblico. A questão de primordial importância para os reformadores luteranos não é realmente o número de sacramentos, mas o seu uso. Os reformadores desejavam que os sacramentos fossem usados ​​e que, através do seu uso, os cristãos fossem salvos e tivessem conforto no conhecimento seguro de que Cristo fez todas as coisas para o seu bem. Desta forma, a cruz de Cristo não fica remotamente no passado, mas é sempre uma realidade presente para quem está em Cristo.

Sendo assim, embora a Santa Absolvição não tenha nenhum elemento visível, ela definitivamente contém a instituição de Cristo. As Confissões Luteranas também apontam sabiamente que “nenhuma pessoa sensata faria um escarcéu em torno da quantidade ou do termo, desde que se retenham as coisas que têm mandamento de Deus e promessas”.[5]

Lutero fala frequentemente sobre a Santa Absolvição, conectando-a com a proclamação oral do Evangelho e com a vivência contínua do Santo Batismo. Embora seja costume no Luteranismo falar de dois Sacramentos – o Batismo e a Santa Ceia – faremos bem em ter em mente esta importante verdade:


“Deus é extremamente rico em sua graça. Primeiro, mediante a palavra falada, em que é pregada remissão de pecados em todo o mundo. Esse é o oficio próprio do evangelho. Em segundo lugar, pelo batismo; em terceiro, pelo santo sacramento do altar; em quarto, mediante o poder das chaves e, também, per mutuum coloquium et consolationem fratrum [por meio de mútuo colóquio e consolação dos irmãos]”.[6]

Sendo assim, Sacramentos e a Palavra são considerados meios da graça porque têm os mesmos efeitos, sendo ambos meios da graça que conferem a graça de Deus. Essa conexão é expressa chamando os sacramentos de “Palavra visível” ou a Palavra de “sacramento audível”, destacando que pertencem um ao outro como comunicações graciosas de Deus. Portanto, temos esses diferentes canais através dos quais recebemos graça.

“Por que?”

A questão que surge frequentemente nesse contexto é: por que temos esses canais diferentes? Por que temos a Palavra, os sacramentos e o batismo?

Existe uma tendência minimalista em muitos que tentam se contentar com o mínimo necessário. Estranhamente, em vez de nos alegrarmos por Deus derramar sua graça de várias maneiras, a pergunta que muitos fazem é: “realmente preciso fazer isso?”

Alguns cristãos têm esse sentimento: “Eu preciso ir à Ceia? Com que frequência preciso ir à Comunhão? Se recebo o perdão dos pecados no início do culto, preciso recebê-lo novamente na Ceia do Senhor? Não é um exagero?”

Bem, se você perceber que o perdão dos pecados é algo de que nunca se pode ter demais, onde não há excesso, então perceberá que não, nunca será demais. É um prazer de Deus nos dar esses diferentes meios pelos quais ele vem até nós e nos toca de maneiras diversas. Não deduzimos a necessidade dos meios de graça individualmente a partir de um princípio abrangente. Cada meio de graça depende de sua instituição por Cristo.

Batizamos porque Cristo nos ordenou: “portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os” (Mt 28.19). Celebramos a Ceia do Senhor porque Cristo disse: “façam isto” (1Co 11.23-25). Pregamos a Palavra não porque haja pessoas loquazes que precisam falar, mas porque Cristo comissiona sua igreja: “Vão por todo o mundo e preguem o evangelho a toda criatura” (Marcos 16.15).

Em outras palavras, tudo isso é  uma instituição de Cristo. Precisamos deles? Bem, se Cristo realmente instituiu esses meios para que sua graça nos alcançasse e se ele nos conhece tão bem, melhor que nós mesmos (cf. Sl 139.1-14), talvez devêssemos confiar que realmente precisamos deles. Devemos ter essa humildade. Se Cristo instituiu isso, há uma necessidade da nossa parte de usufruir desses meios.

Um dos efeitos do pecado é justamente não vermos nossas necessidades corretamente, acharmos que estamos bem quando na verdade não estamos. Uma vez que somos confrontados pela lei, percebemos que somos pecadores e que nossas falhas diárias são contínuas. Continuamente ficamos aquém do que Deus quer de nós. Deus nos oferece o perdão dos pecados de várias maneiras, o que não é um luxo ou algo supérfluo, mas uma necessidade, uma graciosa condescendência para nós.

A fome pela Ceia do Senhor e pela pregação da Palavra surge quando percebemos nossa necessidade. Enquanto você pensa: “Preciso ir? Preciso disso?” Lembre-se de que Jesus veio para os doentes, não para os saudáveis (cf. Mc 2.17). Se você acha que não precisa, não participe apenas por obrigação. Reconheça que algo está errado com você.

O que fazer se não sentir necessidade da Ceia do Senhor? Mesmo que não tenha sido escrito diretamente por Lutero, foi aceito em seus escritos: considere que Cristo teve que morrer pelos seus pecados. Se você não acha que tem pecado, coloque a mão no peito e verifique se ainda tem carne e sangue. Creia na Palavra de Deus que enquanto viver nesta vida, será pecador (cf. Gl 5 e Rm 7.[7] Se não sentir nada, reconheça isso como pecado. Isso é o seu entorpecimento espiritual. Confesse seu entorpecimento e peça a Cristo que o torne sensível ao seu pecado e lhe dê fome da sua Palavra e do seu sacramento.

Conclusão

Assim, a Palavra e os sacramentos são instituições graciosas de Cristo que nos concedem a graça, o favor de Deus, o perdão dos pecados. Cada um depende de sua própria instituição. São diferentes, mas concordam em uma coisa: são canais da graça de Deus. Eles nos trazem agora o que Cristo conquistou para nós na cruz. Eles fazem a ponte entre nós e a cruz. Não precisamos voltar para a cruz, e nem podemos. Através da Palavra e dos sacramentos, somos purificados pelo sangue de Cristo, tornando o que foi conquistado na cruz algo nosso.

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Rev. Filipe Schuambach Lopes

[1] Obras Selecionadas, Vol. II, p. 422

[2] Confissão de Augsburgo, Artigo XII, p. 56.

[3] Assim afirma o Artigo XIII da Apologia: “se a ordem for entendida como referente ao ministério da palavra, não relutaremos em chamar a ordem de sacramento. Pois o ministério da palavra tem mandamento divino e magníficas promessas. Romanos 1[.16]: ‘Ο evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê’. Da mesma forma, em Isaías 55[.11]: ‘A palavra que sair da minha boca não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz etc.’. Se a ordem for entendida dessa maneira, não nos recusaremos a chamar de sacramento nem a imposição de mãos. Pois a igreja tem o mandato de constituir ministros, pelo qual devemos ser profundamente gratos, porque sabemos que Deus aprova esse ministério e nele está presente”.

[4] Apologia da Confissão, Art. XIII, p. 250.

[5] Apologia da Confissão, Art. XIII, p. 252

[6] Artigos de Esmalcalde, Parte III, Art. 4

[7] Cf. Catecismo Menor, Questionário Cristão.

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