Recentemente, a revista eletrônica da LCMS (
Lutheran Church-Missouri Synod, nossa igreja mãe-irmã dos Estados Unidos),
The Lutheran Witness, publicou um artigo intitulado
"Epiphany Traditions: King Cake & House Blessing",
[1] destacando tradições relacionadas ao período da Epifania. É interessante observar como todos nós, de alguma forma, possuímos tradições — sejam pessoais, familiares ou comunitárias. Isso é especialmente evidente durante o Natal, quando muitas famílias têm o costume de se reunir para uma ceia especial, participar de cultos ou programas de Natal e vivenciar momentos únicos que se repetem ano após ano.
Inspirado por este artigo e outros materiais, gostaria de refletir sobre uma tradição cristã significativa: a bênção da casa. Este costume, profundamente enraizado na fé, nos convida a trazer a presença e a bênção de Cristo para nossos lares, algo especialmente oportuno durante o período da Epifania.
O período da Epifania, que se inicia em 6 de janeiro, marca o encerramento do período natalino e possui raízes profundas na tradição da Igreja Oriental. Este dia especial, conhecido como o “Dia da Luz”, celebra tanto o nascimento quanto o batismo de nosso Senhor. Como destaca Arthur Just,
“a Epifania e o Natal estão intimamente ligados pelo tema da luz. A luz traz clareza em meio à escuridão. A luz de Cristo, que nasceu em Belém, agora brilha durante todo o período da Epifania, quando o menino Jesus se manifesta a nós como o Messias e o Salvador. No tempo do Natal, o Advento prepara o clímax do Natal, que continua no período da Epifania” (Just, 2008, p. 211).[2]
Durante o período da Epifania, a revelação de Jesus Cristo se manifesta de forma profunda e multifacetada em diversos eventos registrados nas Escrituras. Nós contemplamos o bebê a quem as nações se curvam, representado pelos magos que vieram do Oriente para adorá-lo e oferecer-lhe presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus 2.1-12). Ouvimos a voz do Pai celestial declarar: “Este é o meu Filho amado, em quem me agrado”, durante o batismo de Jesus no rio Jordão (Mateus 3.16-17). Além disso, somos testemunhas do início de suas maravilhas, quando ele transforma água em vinho nas bodas de Caná, revelando sua glória e levando Seus discípulos a crerem nele (João 2.1-11).
Esses eventos não apenas proclamam a identidade de Jesus como o Messias e Salvador do mundo, mas também ecoam poderosamente nas tradições da igreja ao longo do período da Epifania, apontando para a luz de Cristo que brilha em meio à escuridão e ilumina todos os povos.
Uma dessas tradições é a bênção da casa, que envolve marcar o batente da porta com um giz. Nesse momento, familiares e amigos se reúnem na entrada principal de casas ou apartamentos para pedir a bênção de Deus sobre a residência e todos os que moram ou visitam o local. Para quem mora sozinho, é possível convidar amigos, vizinhos ou até mesmo realizar esse rito na igreja, marcando a entrada do templo.
A origem dessa tradição é incerta, mas alguns afirmam que a prática de abençoar casas na Epifania teve origem na Europa Central e se espalhou durante o fim da Idade Média. Essa tradição foi preservada e adaptada ao longo dos séculos, sendo usadas pelas mais diversas igrejas cristãs.
Recomenda-se que o pastor da congregação seja convidado para realizar este momento. Como é comum muitos pastores estarem de férias neste período, o que pode dificultar sua presença, o rito também pode ser realizado por algum líder da igreja ou até mesmo por um membro da casa. Para isso, uma liturgia preparada está disponível para
download e pode ser utilizada como guia, facilitando que todos participem deste momento.
A marcação no batente da porta geralmente segue o formato do ano em curso, como 20 + C + M + B + 25 (para este ano). Embora alguns associem as letras aos nomes dos magos (que a tradição sugere que seja Caspar (C), Melchior (M) e Baltazar (B), os luteranos frequentemente destacam o significado cristocêntrico: Christus Mansionem Benedicat (“Que Cristo abençoe esta casa”). Esse costume reforça o foco central da Epifania: o Cristo que tanto nos amou que veio habitar entre nós.
No livro do Êxodo, os israelitas marcaram suas portas com sangue para que o Senhor passasse por cima de suas casas (Êxodo 12.7,13). No entanto, neste rito, usamos o giz para marcar as portas e oramos, pedindo a presença e a bênção de Deus em nossos lares.
Muitas vezes, nós, luteranos, somos alvo de preconceito contra práticas que parecem “muito católicas”. Sentimos vergonha de nossas próprias tradições, como abençoar pessoas e objetos, mesmo quando elas estão registradas em nossos catecismos. Desde pequeno, cresci pedindo e recebendo a bênção de meus pais, avós e tios, um costume que se perdeu em muitas famílias. No Catecismo Menor, Lutero instrui:
“como o chefe da família deve ensinar os membros de sua casa a pedir a bênção e dar graças à mesa”.
[3] Além disso, na seção das orações, a tradução em português da edição de 2016 diz:
“De manhã, quando te levantas, benzer-te-ás, dizendo: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém”.[4]
Alguns podem argumentar que tal prática "não está na Bíblia", que tais bênçãos litúrgicas não são sacramentos e que Cristo não as instituiu ou autorizou — e, portanto, que o luterano deve evitá-las. No entanto, dizer isso é ser mais luterano do que Lutero e mais confessional do que as próprias confissões. Em outras palavra, é perder o equilíbrio entre a fidelidade às Escrituras e a liberdade cristã, negando o valor de tradições que podem enriquecer a vida espiritual dos crentes sem comprometer a doutrina bíblica. Essas tradições, quando praticadas com liberdade e entendimento correto, podem ser bênçãos ricas que edificam a fé e fortalecem nossa comunhão com Deus e com o próximo; é desperdiçar nossa liberdade cristã, judaizando ao contrário: impondo um “não-ritual” sobre as consciências dos fiéis.
Como luteranos que creem no poder da Palavra de Deus para santificar, reconhecemos que vivemos em uma guerra espiritual, onde anjos e demônios são realidades, não meras projeções psicológicas. Por isso, mantemos essas tradições da igreja cristã com confiança e alegria.
E a bênção dos lares é uma dessas práticas, tradicionalmente realizada pelo pastor durante o período da Epifania, mas como dito acima, devido ao período de férias dos pastores, pode ser realizada por um lider ou chefe da família. Na Agenda de Culto da IELB, na página 255, encontramos diversas ordens de dedicação (entendidas como bênçãos) para diferentes momentos e objetos: altares, púlpitos, instrumentos musicais, utensílios do altar, salas da congregação, estabelecimentos públicos e privados, residências pastorais e particulares, entre outros.
A ordem de bênção para residências na Agenda é breve e objetiva, mas o Pastoral Care Companion, da LCMS, oferece uma abordagem mais detalhada, com orientações como:
1. É apropriado que o lar cristão seja abençoado mediante a Palavra de Deus e a oração. Este rito deve ser usado quando um novo lar está prestes a ser habitado, quando uma família acaba de se mudar ou em outras ocasiões (por exemplo, após um roubo, um ato de vandalismo, um assalto ou assassinato, um incêndio ou outro tipo de destruição, ou a renovação do lar).
2. O lar pode ser abençoado anualmente. Geralmente, isso é realizado durante o período da Epifania, em conexão com a visita dos magos ao lar do menino Jesus (Mt 2.1-11; Jo 1.14).
3. Todos os membros da família que habitam no local, bem como amigos e familiares, podem participar do rito. Devido ao caráter responsivo do rito, é recomendável preparar cópias impressas para todos os participantes.
4. Se desejado, um ou mais cômodos podem ser abençoados. A sequência deve ser adaptada conforme a disposição do lar.
5. O pastor da congregação preside o rito. Ele pode vestir-se com os trajes (litúrgicos) habituais, utilizando as cores correspondentes ao período litúrgico.
6. Se os membros da família ou os convidados participarem como assistentes, o pastor deve designar as leituras com antecedência.
7. Devido ao caráter solene da Semana Santa, é inapropriado agendar este rito para esses dias.
8. O chefe da família deve ser encorajado a orar regularmente com sua família, a ler a Palavra e a cantar hinos ao longo do ano, especialmente em momentos de angústia.
Que grande bênção é termos a oportunidade de receber Jesus em nosso lar por meio do Santo Ofício do Ministério — por meio de nosso pastor! É essencial recordarmos as palavras de nosso Senhor aos discípulos: “Quem recebe vocês é a mim que recebe; e quem recebe a mim recebe aquele que me enviou.” (Mateus 10.40). Assim, a celebração da Epifania e todo o seu período nos oferecem uma ocasião especial para acolhermos a bênção de Cristo em nossa casa e em nossa vida.
Embora essa prática específica não seja uma tradição amplamente realizada na Igreja Luterana do Brasil, meu objetivo é trazer à tona essa linda possibilidade que temos: não apenas no período da Epifania, mas em todos os momentos, acolher em nossas casas a presença e a bênção de Deus por meio do pastor. Esse momento, especialmente no início de um novo ano, nos convida a renovar a presença de Jesus entre nós, lembrando que Ele é a luz que ilumina nossas vidas e o centro de nosso lar.
No link abaixo, você pode baixar uma sugestão de liturgia para este rito.
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aqui, você encontra a mesma liturgia, em uma fonte maior (16).
Rev. Filipe Schuambach Lopes
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[2] JUST, Arthur A. Heaven on Earth: The Gifts of Christ in the Divine Service. S. Louis: Concordia Publishing House, 2008. [3] Catecismo Menor, Livro de Concórdia, 2021, p.398. [4] Catecismo Menor, Livro de Concórdia, 2016, p.379.
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