"Sermão de Martinho Lutero” detalhe de um retábulo (1547) de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553), na Igreja Santa Maria em Wittenberg. |
O que é idolatria? Ter imagens, como crucifixos, quadros ou estátuas, em nossas igrejas e lares constitui idolatria e pecado? Essas perguntas têm sido motivo de muita discussão, especialmente entre cristãos que debatem se a simples presença de imagens pode se configurar como desobediência ao primeiro mandamento. Para responder adequadamente a essas questões, precisamos olhar para as Escrituras.
O significado de idolatria segundo Lutero
Lutero define idolatria como “um coração que se volta para outras coisas e busca auxílio e consolo junto às criaturas, santos ou diabos, e não se importa com Deus” (Catecismo Maior, 1º Mandamento, p. 416). Com base nisso, percebemos que a idolatria não está na presença de uma imagem em si, mas no fato de depositarmos nossa confiança, amor e temor nessas coisas, em vez de confiarmos unicamente em Deus. Idolatria acontece quando elevamos algo — seja uma imagem, uma pessoa ou uma ideia — ao lugar que só pertence a Deus. Nesse sentido, é possível cometer idolatria sem sequer ter uma imagem, por exemplo, idolatrando dinheiro, sucesso, uma pessoa ou até nós mesmos.
Além de que, de certa forma, abrigamos ídolos ocultos em nossos corações, sejam coisas ou pessoas nas quais depositamos nosso temor, amor e confiança mais do que em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Por isso, devemos constantemente buscar o perdão do Senhor, e ele, por sua infinita misericórdia, nos perdoará. E por que podemos ter essa certeza? Porque Deus, por meio de Jesus Cristo, perdoa todos os nossos pecados.
Entendimento bíblico sobre imagens
Muitos que afirmam que o uso de crucifixos ou imagens é proibido frequentemente citam Êxodo 20.3-4 como argumento: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.” Contudo, esse texto refere-se à prática de adoração a imagens como se fossem deuses, proibindo que elas sejam usadas como objeto de culto e reverência divina.
De acordo com a Bíblia de Estudo da Reforma,
“alguns intérpretes cristãos, rabinos judeus e clérigos muçulmanos interpretaram mal esse texto e concluíram que o povo de Deus não deve criar imagens tridimensionais de nenhum tipo. Desde o século VIII, cristãos ortodoxos insistem que os artistas religiosos se limitem a obras bidimensionais, como pinturas e mosaicos. Andreas Karlstadt, um radical reformador alemão, liderou um movimento para destruir estátuas e remover obras de arte das igrejas, influenciando os reformadores suíços Zwinglio e Calvino a também ‘limparem’ suas igrejas, retirando as obras de arte. Eles permitiam que ilustrações de histórias bíblicas fossem usadas em lares, desde que essas figuras não tivessem uso devocional” (Bíblia de Estudo da Reforma, p. 147).
Porém, em contraste,
"Deus ordenou que Moisés criasse imagens de querubins para o tabernáculo (Êx 25.18-20), o que mostra que a criação de tais figuras tridimensionais não era proibida. O que Deus proíbe é a adoração dessas figuras, e a criação de imagens que representem o Deus invisível. A palavra hebraica para ‘escultura’, traduzida em Êxodo 20.4, não se refere a qualquer tipo de escultura, mas comumente descreve um ídolo. Exemplos dos querubins no tabernáculo e outras obras de arte no templo de Salomão (como lírios, romãs e bois em 1Rs 7.19-25) mostram que Deus não restringiu a arte a duas dimensões. Mais importante, o próprio Deus assumiu uma forma tridimensional na pessoa de Jesus Cristo, o ‘ícone’ ou ‘imagem’ do Deus invisível (Cl 1.15)" (Bíblia de Estudo da Reforma, p. 147).
A importância do crucifixo e das imagens
O mais importante ornamento do altar é o crucifixo, uma cruz contendo a escultura do corpo de Cristo. O crucifixo enfatiza a humanação de Cristo e seu sacrifício perdoador. Uma cruz lisa e vazia carece dessa ênfase. Há quem afirme que a cruz vazia representa a ressurreição, mas também pode significar uma desvalorização da humanação e uma espiritualização de Cristo. A Igreja Luterana, no entanto, crê que “à parte desse homem não há Deus” (Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, Da Pessoa de Cristo, VIII, 81). Cristo se fez homem e continua presente conosco também de acordo com sua natureza humana. Ele nos dá seu verdadeiro corpo e sangue na Santa Ceia.
Assim como a serpente de bronze, quem olhar com fé para o sacrifício de Cristo na cruz é salvo, não de um veneno, mas de algo muito pior — o pecado e a morte eterna (João 3.14-15; Números 21.8-9). Portanto, o uso de uma imagem com propósito pedagógico, como o crucifixo, não é idolatria, mas um lembrete visual do ato de salvação de Cristo.
Muitas igrejas reformadas e protestantes, seguindo a influência de Zwinglio e Calvino negam a presença corporal de Cristo. De acordo com a tradição delas, é preferível uma cruz simples e vazia como expressão de fé. No entanto, a tradição luterana, por ser de matéria confessional, prefere o crucifixo à cruz vazia, pois o crucifixo enfatiza a obra de Cristo por nós.
A função pedagógica da liturgia e das imagens
O culto cristão envolve todos os sentidos: visão, audição, tato, paladar e olfato. A visão, especialmente, desempenha um papel pedagógico essencial. Todos os aspectos litúrgicos são cuidadosamente preparados e executados com o propósito de nos ensinar por meio do que vemos. As cores dos paramentos, as vestes litúrgicas, as velas, os gestos e os objetos sagrados, como o crucifixo, são utilizados para comunicar a própria Palavra de Deus em forma simbólica e visual.
O crucifixo, em especial, serve como um lembrete do sacrifício de Cristo, ajudando-nos a refletir pedagogicamente, com mais seriedade, naquilo que Cristo fez por nós na cruz, ao dar o seu corpo e sangue por nossos pecados. Isso é especialmente útil quando participamos da Santa Ceia, onde, devido a diversos fatores como cansaço ou distrações, corremos o risco de não fazer o correto discernimento do que estamos recebendo ali no altar: o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo com o pão e o vinho para o perdão dos nossos pecados. A visão do Cristo crucificado nos ajuda a fazer esse correto discernimento na Ceia do Senhor (1Coríntios 11.29).
O crucifixo não deve despertar compaixão pelo sofrimento de Cristo no Calvário, mas, antes de tudo, lamentação por nossos pecados e gratidão pelo amor de Deus. Se assim for, o crucifixo e outros elementos visuais terão um caráter devocional. O mesmo princípio se aplica a quadros, estátuas e outros objetos na igreja.
O debate sobre a cruz vazia ou o crucifixo
Muitos argumentam que, como “Cristo não está mais na cruz”, a cruz vazia seria uma representação mais adequada. Sim, Cristo ressuscitou ao terceiro dia, vencendo a morte, e essa é a garantia de que também nós ressuscitaremos (1Coríntios 15.20-22). Contudo, se quisermos representar o Cristo ressuscitado, uma cruz vazia pode não ser o símbolo mais adequado, já que as três cruzes ficaram vazias na Sexta-feira Santa. Se quisermos representar corretamente o Cristo ressuscitado, deveríamos colocar uma catacumba aberta, pois foi de lá que Ele ressuscitou.
Por outro lado, a Palavra de Deus é clara: “nós pregamos o Cristo crucificado” (1Coríntios 1.23). Isso não significa que estamos sacrificando Cristo novamente, mas que o conteúdo central da nossa pregação e da nossa vida é o Cristo crucificado, pois foi naquele ato de amor, quando Ele estendeu os braços na cruz, que encontramos o perdão dos nossos pecados e a certeza da vida eterna.
Movimentos como o pietismo, o iconoclasmo e a União Prussiana influenciaram negativamente a valorização das imagens, levando à rejeição de elementos visuais, como o crucifixo.
O próprio pietismo, iniciado no final do século XVII, foi liderado por Philipp Jakob Spener (1635-1705) e August Hermann Francke (1663-1727). Ele enfatizava uma espiritualidade pessoal, focada na experiência individual, muitas vezes rejeitando práticas litúrgicas externas e o uso de símbolos visuais como o crucifixo.
Já o iconoclasmo, por sua vez, ocorreu principalmente durante o período da Reforma Protestante no século XVI, e foi promovido por reformadores como Andreas Karlstadt (c. 1480-1541) e Ulrico Zwinglio (1484-1531). Eles defendiam a destruição de imagens religiosas, acreditando que poderiam incentivar a idolatria. Esse movimento levou à remoção de muitas obras de arte sacra nas igrejas reformadas. A União Prussiana, estabelecida em 1817 pelo rei Frederico Guilherme III da Prússia, tentou unificar as igrejas luteranas e reformadas na Prússia, promovendo a simplificação da liturgia e uma redução no uso de símbolos visuais tradicionais, como crucifixos e paramentos litúrgicos.
No Brasil, além desses movimentos, a Igreja Luterana (IELB) também enfrentou um sentimento anti-católico romano, muitas vezes influenciado pelos próprios pastores, o que levou ao desencorajamento do uso de imagens, como o crucifixo, e até mesmo do sinal da cruz, por serem práticas associadas ao catolicismo romano. Contudo, mesmo que um grupo minoritário na igreja ainda defenda essas ideias, é notável o erro desse pensamento, que aos poucos vem sendo corrigido dentro da própria igreja. Um exemplo disso está presente na rubrica do Hinário Luterano, que em suas declarações trinitárias incentiva: “em lembrança de seu batismo, todos poderão fazer o sinal da cruz”.
Além disso, como muito bem se sabe, a liturgia e os aspectos litúrgicos não pertencem a uma denominação específica, mas à igreja cristã universal, o que reflete o significado do termo “católico”, que se refere à igreja cristã como um todo, e não apenas à igreja católica romana.
Conclusão
Portanto, o uso de crucifixos e imagens em nossos templos ou lares não constitui idolatria, desde que sejam compreendidos como símbolos que apontam para Cristo, "o Autor e Consumador da fé" (Hebreus 12.2), sem serem objeto de adoração. Eles servem para nos lembrar, de maneira visual e concreta, da obra de redenção de Jesus, levando-nos à verdadeira adoração que pertence exclusivamente a Deus (Apocalipse 19.10). Que em tudo, toda honra e glória sejam dadas ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.
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