quinta-feira, 17 de abril de 2025

A Quinta-feira Santa


A QUINTA-FEIRA SANTA

A Quinta-feira Santa marca um momento de profunda reverência e significado dentro do ciclo litúrgico da Igreja. Celebrada na véspera da morte de nosso Senhor Jesus Cristo, ela é a porta de entrada para o Tríduo Pascal — os “três dias santos” — que culminam na glória da ressurreição na manhã de Páscoa. Esta celebração não é apenas uma recordação histórica dos últimos eventos antes da crucificação de Jesus; ela é uma vivência litúrgica e sacramental da Paixão, onde o Corpo de Cristo — a Igreja — caminha junto com o Senhor desde a Ceia até a cruz e o túmulo.

Este dia sempre teve grande importância na história da Igreja, principalmente porque comemora a Instituição da Ceia do Senhor. Esse fato lhe conferiu diversos nomes ao longo dos séculos, como Coena Domini (“Dia da Ceia”), Dies Natalis Calicis (“Nascimento do Cálice”) e Dies Mysteriorum (“Dia dos Mistérios”).

O nome pelo qual é mais conhecido — “Quinta-feira Santa”, ou em latim Dies Mandati (“Dia do Mandamento”) — tem referência especial às exortações de Cristo à humildade e ao amor, conforme relatado na narrativa do lava-pés no Evangelho de João (cf. Jo 13.1–17, 34). Contudo, não se deve esquecer também do mandamento da própria Instituição do Sacramento, quando o Senhor diz: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22.19; 1Co 11.24). A Quinta-feira Santa, portanto, é ao mesmo tempo a celebração da comunhão no amor e da comunhão no Corpo e Sangue de Cristo.

Na tradição alemã, o dia também é chamado de Gründonnerstag (“Quinta-feira Verde”). Esse nome remonta à prática da reconciliação dos penitentes na Igreja antiga, que ocorria especialmente nesse dia. Lembrando Lucas 23.31, os pecadores — representados como galhos secos — eram trazidos de volta à comunhão da Igreja, tornando-se ramos verdes, vivos e restaurados. Era o dia do retorno à mesa do Senhor, da renovação da fé, da restauração da graça.

Neste dia, a Igreja se reúne em espírito de solenidade, e a liturgia é revestida com paramentos brancos, a cor da luz, da glória e da presença divina, em contraste com o luto que se aproxima. A cor branca remete ao dom sagrado que o Senhor confiou à sua Igreja neste dia: a instituição da Santa Ceia, na qual o próprio Cristo se entrega a nós com seu verdadeiro Corpo e Sangue, para o perdão dos pecados.

O Sacramento do Altar deve ser o ponto central do culto luterano na Quinta-feira Santa. Não é apenas uma memória simbólica, mas uma comunhão viva e real com o Senhor crucificado e ressuscitado. Como ensina a Confissão de Augsburgo, “o verdadeiro corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes sob a forma do pão e do vinho, e são distribuídos e recebidos” (Confissão de Augsburgo, Art. X​).

A pregação deve destacar não apenas a importância do evento da Instituição da Ceia, mas também as bênçãos contínuas que recebemos ao participar do corpo e sangue de nosso Senhor, no, com e sob o pão e o vinho. O culto deve deixar claro que a Ceia não é apenas uma refeição memorial — ideia bastante comum em outras denominações protestantes —, mas sim algo muito mais profundo: nosso Senhor realmente vem até nós e nos concede o perdão dos pecados. Esse é o coração do culto luterano: a certeza de que Cristo se entrega por nós ali, presente na sua Palavra e Sacramento.

Pode-se enfatizar também que a Ceia é o testamento final de Cristo, e não um contrato entre partes iguais — essa verdade pode e deve ser expressa na liturgia, seja na homilia (mensagem), seja nas orações. Algumas congregações luteranas têm, inclusive, apresentado aos membros as semelhanças entre a Ceia Judaica e a Última Ceia de Jesus. Embora essas conexões possam enriquecer o entendimento histórico, a Quinta-feira Santa não é o momento mais apropriado para esse tipo de ensino catequético. Essa instrução é melhor reservada para um domingo à noite durante a Quaresma ou outro dia da Semana Santa.

Além do Sacramento, o gesto de Jesus ao lavar os pés dos discípulos também é lembrado nesse dia. Por isso, além da Ceia do Senhor, o serviço humilde também pode ser um tema do culto da Quinta-feira Santa — especialmente aquele exercido no ministério cristão dentro da comunidade. Em muitas igrejas, o pastor lava simbolicamente os pés de alguém como parte da liturgia. Contudo, o culto também pode enfatizar que o ministério pastoral é um serviço dirigido a todos e em favor de todos. Uma sugestão pastoral edificante seria convidar um representante do sínodo ou do distrito para pregar neste culto, reforçando a importância do ofício pastoral na vida da congregação.

Algumas liturgias luteranas recomendam a omissão da Bênção final neste culto, uma vez que ele é compreendido como a primeira parte de um único serviço/culto contínuo que se estende até a Sexta-feira Santa e a Vigília Pascal. Caso essa prática seja adotada, é fundamental que seja bem explicada à congregação, para que todos compreendam que os “três dias” do Tríduo formam um único culto contínuo, e que sua meditação, mesmo em casa, acompanhe esse espírito de unidade litúrgica e teológica.

O DESGUARNECIMENTO DO ALTAR: ORIGEM, SIGNIFICADO E ORDEM
Um dos momentos mais comoventes da Quinta-feira Santa é o desguarnecimento do altar, também chamado de despojamento. Este rito não apenas encerra a liturgia da Ceia do Senhor, mas introduz a
Igreja no mistério da humilhação de Cristo. O altar — centro da presença sacramental e da comunhão — é despido e deixado nu, como Cristo foi despojado e entregue aos seus algozes.

A origem deste rito remonta à Igreja antiga. Conforme registra Frank Senn, em sua análise da tradição litúrgica ocidental, já no século VII encontramos instruções específicas para o despojar e lavar do altar na obra de Isidoro de Sevilha, De ecclesiasticis officiis 1.29. Essa prática foi institucionalizada pelo XVII Concílio de Toledo (ano 694), que além de ordenar o rito do lava-pés (Mandatum), também menciona a purificação e desnudamento do altar como parte do culto da Quinta-feira da Paixão. A partir da Idade Média, esse gesto se expandiu por diversos missais e tradições locais, até se consolidar na prática litúrgica da Igreja.

Mas o rito não é apenas tradicional. Ele é profundamente simbólico. Como ensina Lang:
“Tradicionalmente o altar é desguarnecido e lavado depois do culto de santa ceia na quinta-feira de paixão. O serviço é feito nessa ocasião, não só pela razão prática de que o altar necessita uma limpeza em regra pelo menos uma vez ao ano, mas também por um motivo simbólico. Depois da sua profunda humilhação por nós, [Cristo] nos deve induzir à humildade, como está escrito: ‘Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus. Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens. [...] a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai’ (Fp 2.5-11). O altar pode então permanecer sem cobertas até a véspera de Páscoa (das 18 horas de quinta-feira até as 18 horas de sábado). Mas se for um altar decorado com entalhes e cores, deve ser recoberto com paramentos pretos.”
Esse gesto visível de despojar o altar comunica poderosamente à congregação a solidão de Cristo, seu abandono, sua entrega total. Timothy Maschke complementa que “o despojamento do altar é simbólico da humilhação de Jesus nas mãos daqueles que o crucificaram”.

A ordem do desguarnecimento do altar pode seguir a seguinte sequência reverente e simbólica, conforme a tradição luterana e a prática pastoral recomendada:
  • As velas são apagadas, marcando o início do silêncio sagrado. Este gesto simboliza a retirada progressiva da luz de Cristo do mundo, à medida que Ele se entrega à escuridão da traição, do abandono e da cruz. Cristo é a “Luz do mundo” (João 8.12), e o apagar das velas sinaliza o avanço das trevas da Sexta-feira da Paixão. O altar, iluminado durante a Ceia, agora mergulha na penumbra do Getsêmani.
  • Retiram-se os pratos de oferta, representando a finalização da participação comunitária no ofertório e o esvaziamento das mãos e do coração diante de Deus.
  • Removem-se os materiais da Ceia, isto é, os vasos sagrados utilizados na distribuição do corpo e sangue de Cristo.
  • A Bíblia e seu suporte (missal ou lecionário) são levados em silêncio, indicando a suspensão da proclamação pública da Palavra e remetendo à noite em que “nada respondeu” (Mc 15.5).
  • A cruz do altar ou crucifixo: se for uma cruz vazia, ela pode ser retirada com os demais elementos, simbolizando o abandono e o silêncio da Sexta-feira. Se for um crucifixo (com a figura de Cristo), pode permanecer, como representação visual do Cristo crucificado, aquele que permanece conosco mesmo na morte, e que não será removido da cruz antes do tempo determinado pelo Pai.
  • As toalhas e os paramentos do altar são cuidadosamente dobrados e levados, desnudando o altar como símbolo da humilhação e do despojamento de Cristo por nós.
  • Por fim, coloca-se sobre o altar um paramento (toalha) preto, sinal de luto, solidão e expectativa silenciosa pela ressurreição.
Durante esse momento, há duas opções devocionais recomendadas. Tradicionalmente, o Salmo 22 (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”) é lido ou cantado em voz baixa, acompanhando cada retirada com silêncio reflexivo. Porém, recomenda-se também que se cante o Hino 93 do Hinário Luterano, que guia a assembleia em oração profunda e confissão de fé no Cordeiro de Deus.

Os auxiliares para esse momento devem ser escolhidos e informados dias antes pelo pastor, para que se preparem espiritual e liturgicamente. Durante o rito, todos os que auxiliam devem permanecer aos pés do altar, onde o pastor entregará, um a um, os elementos e objetos litúrgicos, conforme a ordem acima. No momento de colocar os paramentos pretos, o pastor pode convidar um auxiliar para acompanhá-lo, como expressão de luto partilhado pela comunidade.

Somente após a colocação final da toalha preta, o pastor e os auxiliares saem juntos do altar, seguidos pela assembleia, em completo silêncio, sem bênção final. A congregação, então, é conduzida ao recolhimento, ciente de que o culto não foi encerrado, mas que segue na Sexta-feira da Paixão e Sábado de Aleluia, até culminar na Vigília Pascal. Este silêncio final não é vazio, mas cheio de expectativa — é o espaço onde a fé contempla o mistério do abandono, da morte e da vitória prometida.

CONCLUSÃO
A Quinta-feira Santa nos conduz, com reverência e sobriedade, ao coração da fé cristã: o mistério do Corpo entregue e do Sangue derramado por nós. O altar despido é símbolo do Cristo esvaziado, humilhado, crucificado. A Igreja, em silêncio, contempla esse mistério, enquanto aguarda com esperança a madrugada da ressurreição.

Como nos exorta o apóstolo: “vocês anunciam a morte do Senhor, até que ele venha.” (1Co 11.26). E essa proclamação começa aqui — na mesa, no serviço, no altar despido, e no silêncio que prepara o aleluia.

+ Rev. Filipe Schuambach Lopes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIVRO DE CONCÓRDIA: Confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2021.
JUST JR., Arthur A. Heaven on Earth: The Gifts of Christ in the Divine Service. St. Louis: Concordia Publishing House, 2008.
LANGE, Paul H. D. Manual da Comissão de Altar. 1987.
LUTHERAN CHURCH—MISSOURI SYNOD. Lutheran Service Book: Altar Book. St. Louis: Concordia Publishing House, 2006.
MASCHKE, Timothy H. Gathered Guests: A Guide to Worship in the Lutheran Church. St. Louis: Concordia Publishing House, 2003.
REED, Luther D. The Lutheran Liturgy: A Study of the Common Service of the Lutheran Church in America. Philadelphia: Muhlenberg Press, 1947.
SENN, Frank C. Christian Liturgy: Catholic and Evangelical. Minneapolis: Fortress Press, 1997.
STRODACH, Paul Zeller. A Manual on Worship. Revised ed. Philadelphia: Muhlenberg Press, [s.d.].

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