O artigo de fé sobre a Santíssima Trindade ocupa lugar central na confissão cristã desde os primeiros séculos da Igreja. Nele, a Igreja reconhece e adora a um só Deus em três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, iguais em essência, majestade e glória. A formulação dessa fé foi consolidada nos credos ecumênicos, em especial o Credo Niceno-Constantinopolitano, que serviu de fundamento para a doutrina cristã em todo o mundo. Contudo, a inclusão posterior da cláusula Filioque , “e do Filho”, no artigo referente à procedência do Espírito Santo, tornou-se um ponto de forte controvérsia entre o Oriente e o Ocidente.
No coração do debate está a questão de como expressar, sem contradição, a relação eterna entre as pessoas divinas, particularmente a origem do Espírito Santo. A tradição ocidental, em grande parte marcada pela herança agostiniana, acrescentou a afirmação de que o Espírito Santo procede “do Pai e do Filho”. Já o Oriente permaneceu fiel à formulação original do Concílio de Constantinopla (381), confessando a procedência “do Pai”, considerando que qualquer adição romperia a fidelidade ao texto conciliar e comprometeria a primazia do Pai como fonte da Trindade.
A Reforma Luterana herdou essa tensão e, ao mesmo tempo, buscou reafirmar a fidelidade às Escrituras e aos credos ecumênicos. Nas Confissões Luteranas, o ensino sobre a Trindade e a procedência do Espírito Santo ocupa um espaço importante, especialmente no Credo Niceno, no Credo Atanasiano e nas explicações catequéticas. Assim, compreender a questão do Filioque não é apenas revisitar uma antiga controvérsia, mas refletir sobre como a Igreja Luterana, fiel ao Evangelho e ao testemunho apostólico, confessa a unidade e a distinção das pessoas divinas em linguagem clara, precisa e bíblica.
Este estudo, portanto, propõe-se a examinar a questão do Filioque à luz das Confissões Luteranas e da teologia trinitária confessada pela Igreja, dialogando com a história do dogma, as disputas entre Oriente e Ocidente e as interpretações teológicas contemporâneas. O objetivo é oferecer não apenas uma análise histórica, mas também um discernimento confessional, que aponte para a centralidade da fé trinitária como coração da doutrina cristã.
O que é o Filioque?
O termo latino filioque significa “e do Filho” (filio = do Filho; -que = e). Trata-se de uma expressão que foi acrescentada ao Credo Niceno-Constantinopolitano pela Igreja do Ocidente, particularmente na liturgia da Espanha visigótica no século VI, e que mais tarde foi adotada por quase toda a cristandade ocidental. Originalmente, o Credo professava: “Creio no Espírito Santo, que procede do Pai”, em consonância com a formulação do Concílio de Constantinopla de 381. Contudo, o Ocidente passou a confessar: “Creio no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho”. Esse acréscimo se tornou motivo de grande controvérsia entre Oriente e Ocidente, especialmente a partir do século IX, quando o papa Nicolau I defendeu a legitimidade da expressão contra as objeções dos teólogos orientais.
Para compreender o surgimento do filioque, é preciso recordar o contexto histórico e teológico em que ele foi introduzido. No Ocidente, especialmente sob a influência de Santo Agostinho, afirmava-se a unidade substancial do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e a mútua relação entre as pessoas divinas. Dentro desse quadro, dizer que o Espírito “procede do Pai e do Filho” significava salvaguardar a inseparável comunhão entre o Filho e o Espírito, evitando que o Espírito fosse visto como independente de Cristo ou desconectado da obra da salvação realizada pelo Filho. Em outras palavras, o filioque pretendia proteger a doutrina da Trindade contra interpretações que isolassem o Espírito Santo da relação eterna com o Pai e o Filho, e também contra heresias que pudessem sugerir hierarquia ou subordinação entre as pessoas divinas.
Entretanto, no Oriente, a reação foi negativa e profunda. Para a teologia oriental, especialmente marcada pela herança dos Padres Capadócios, a fonte única da divindade é o Pai, entendido como monarchia da Trindade. O Pai é a causa pessoal tanto do Filho, que é gerado, quanto do Espírito, que procede. Assim, afirmar que o Espírito procede “do Pai e do Filho” parecia, aos olhos orientais, comprometer a monarchia do Pai e introduzir uma duplicidade de princípios na Trindade. A formulação oriental desejava preservar de modo absoluto que o Pai é o único “princípio sem princípio”, o único originador, e que nem o Filho nem o Espírito têm essa função.
Aqui aparece também uma diferença de linguagem e método entre Oriente e Ocidente. O Oriente desenvolveu sua teologia trinitária a partir da hipóstase do Pai, enfatizando as relações pessoais e a fonte paterna de toda a divindade. Já o Ocidente, especialmente através de Agostinho, partiu da unidade da essência divina e descreveu as distinções pessoais como relações de oposição internas à mesma substância. Essa diferença metodológica explica em parte a controvérsia: para o Oriente, o acréscimo soava como se o Filho fosse colocado como causa do Espírito, enquanto para o Ocidente significava apenas que o Espírito é o Espírito do Pai e do Filho, não em duplicidade de princípios, mas em comunhão inseparável.
Além disso, como observa Avery Dulles, é preciso distinguir três níveis diferentes nessa controvérsia: (1) a fé cristã básica, comum a todas as tradições, que confessa o Deus trino e o Pai como fonte da divindade; (2) a doutrina oficial da Igreja Ocidental, que afirma o filioque com base em um consenso virtualmente unânime desde o século IV; e (3) a reflexão teológica, que busca compreender esse mistério com analogias como as da inteligência e do amor, segundo Agostinho e Tomás de Aquino.
A questão da terminologia também pesou fortemente. O Oriente usava o termo grego ekporeusis (ἐκπόρευσις) para designar a processão do Espírito, e reservava esse termo estritamente ao Pai como única fonte. Já o latim usava processio num sentido mais amplo, podendo se referir tanto à geração do Filho quanto à espiração do Espírito. Assim, o mesmo termo em latim não tinha a mesma delimitação teológica que no grego. Isso criou mal-entendidos: quando o Ocidente dizia processio a Patre Filioque, não estava atribuindo ao Filho uma causalidade independente, mas afirmando que o Espírito procede da substância divina compartilhada pelo Pai e pelo Filho.
Dulles também destaca que a introdução do filioque não foi um ato isolado ou apressado, mas um desenvolvimento gradual e liturgicamente enraizado: começou na Espanha visigótica por volta do Concílio de Toledo (589), se espalhou para a Gália e Inglaterra e só foi incluído na liturgia romana no século XI. Antes disso, os próprios papas resistiram à inclusão litúrgica, ainda que não rejeitassem a doutrina.
Apesar da controvérsia, é importante destacar que, ao longo da história, houve também tentativas de convergência. Alguns Padres orientais, como Gregório de Nissa, falavam do Espírito que procede “do Pai através do Filho” (διὰ τοῦ Υἱοῦ), reconhecendo assim uma relação intrínseca entre o Filho e o Espírito. No Ocidente, Agostinho afirmava que o Espírito procede do Pai “principalmente” (principaliter) e também do Filho, de modo que o Filho não é um segundo princípio, mas participa da mesma fonte que o Pai. Essas formulações mostram que, ainda que as expressões fossem diferentes, havia aproximações possíveis entre as duas tradições. Tomás de Aquino também considerava legítima a expressão “do Pai através do Filho” como compatível com o filioque.
Em termos positivos, o filioque foi visto no Ocidente não como uma diminuição do Espírito Santo, mas como uma forma de destacar a sua plena divindade e o seu papel inseparável na comunhão da Trindade. O Espírito não é uma realidade impessoal ou independente, mas o vínculo vivo de amor que procede do Pai e do Filho, sendo Ele mesmo Deus. Essa compreensão confere ao Espírito uma dimensão profundamente relacional: Ele é o Espírito do Filho tanto quanto do Pai, e assim garante que a vida cristã seja sempre centrada em Cristo, já que o mesmo Espírito que procede do Pai e do Filho é o Espírito derramado sobre a Igreja para unir os fiéis a Cristo.
Além disso, como argumenta Dulles, a doutrina do filioque ajuda a manter a unidade entre a Trindade eterna (immanente) e a Trindade que atua na história da salvação (econômica). O fato de o Espírito ser enviado pelo Pai e pelo Filho (cf. Jo 15.26; At 2.33) está em harmonia com sua eterna processão de ambos. A missão revela a origem.
Por fim, é necessário distinguir dois aspectos: a processão eterna e o envio temporal. A processão eterna pertence à vida íntima da Trindade, onde o Espírito procede do Pai e do Filho desde toda a eternidade. Já o envio temporal se refere à história da salvação, na qual o Filho, ao ser exaltado, envia o Espírito ao mundo. Essa distinção ajuda a compreender que a fórmula filioque não contradiz a verdade bíblica, mas a explicita: o mesmo Espírito que eternamente procede do Pai e do Filho é o que foi enviado pelo Filho para vivificar a Igreja.
O Filioque nas Escrituras
A doutrina do filioque não nasceu apenas de especulação filosófica ou de decisões eclesiásticas. Sua raiz está no testemunho das Escrituras Sagradas, onde a relação do Espírito com o Pai e com o Filho se revela tanto na eternidade da Trindade quanto na obra histórica da salvação.
João 15.26: O Espírito procede do Pai, mas é enviado pelo Filho
Jesus promete:
“Quando, porém, vier o Consolador, que eu enviarei a vocês da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim”.
Nesse texto, vemos claramente duas realidades: O Espírito procede do Pai (ekporeuetai ek tou Patros), indicando sua origem eterna. Esse mesmo Espírito é enviado pelo Filho (pempō), o que mostra a inseparabilidade da missão do Espírito em relação ao Cristo.
Aqui já se vê o fundamento para confessar que o Espírito não é independente do Filho. Sua obra no mundo é inseparável da obra redentora de Cristo, pois ele é o Espírito da verdade que testifica do Filho. Os Pais da Igreja viram nesse texto uma base fundamental: se o Espírito procede eternamente do Pai, mas é enviado pelo Filho, então não pode haver um Espírito que esteja em oposição ou paralelo ao Filho.
A tradição luterana sempre destacou essa distinção entre processão (ekporeuetai) e envio (pempō), mas sem separar os dois. Como explicou Abraham Calov: “Uma pessoa divina não é enviada no tempo senão por aquele de quem procede eternamente”. Ou seja, o envio temporal do Espírito confirma sua processão eterna do Pai e também do Filho.
Para nós, pastoralmente, isso significa que todo movimento do Espírito em nosso coração nos conduz sempre para Cristo, jamais para longe dele.
João 16.7 e 16.13-15: O Espírito é enviado por Cristo e testifica dEle
Na sequência do discurso de despedida, Jesus afirma que é necessário que ele vá, para que o Consolador venha. Isso mostra que a vinda do Espírito está intrinsecamente ligada à exaltação de Cristo. Além disso, o Espírito não fala de si mesmo, mas glorifica a Cristo, tomando do que é Dele e anunciando aos discípulos.
João 16.7: “Mas eu lhes digo a verdade: é melhor para vocês que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá para vocês; mas, se eu for, eu o enviarei a vocês”.
João 16.13-15: “Porém, quando vier o Espírito da verdade, ele os guiará em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouvir e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele me glorificará, porque vai receber do que é meu e anunciará isso a vocês. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso eu disse que o Espírito vai receber do que é meu e anunciar isso a vocês”.
Esse testemunho reforça a cristocentricidade da obra do Espírito: ele é sempre o Espírito de Cristo, que guia a Igreja na verdade do Evangelho. Aqui também se encontra uma base fortíssima para o filioque. Se “tudo o que o Pai tem é meu”, como diz Jesus, então também a comunicação do Espírito pertence ao Filho.
Se o Espírito viesse de modo independente do Filho, poderia se abrir espaço para uma pneumatologia autônoma, onde o Espírito poderia ser pensado separado do Cristo crucificado e ressuscitado. Mas a Bíblia mostra justamente o contrário: o Espírito glorifica a Cristo, não a si mesmo. Para a vida cristã, isso significa segurança: não precisamos temer “outros espíritos”, porque o Espírito que habita em nós é o Espírito que confessa e glorifica Jesus.
Romanos 8.9-11: O Espírito é chamado de “Espírito de Cristo”
Paulo descreve o Espírito tanto como “Espírito de Deus” quanto como “Espírito de Cristo”:
“Vocês, porém, não estão na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vocês. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Se, porém, Cristo está em vocês, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o Espírito é vida, por causa da justiça. Se em vocês habita o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou Cristo dentre os mortos vivificará também o corpo mortal de vocês, por meio do seu Espírito, que habita em vocês” (Rm 8.9-11).
Essa dupla designação é decisiva, pois mostra que o Espírito não pertence apenas à relação eterna com o Pai, mas também é inseparável da relação eterna com o Filho. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos habita nos crentes, unindo-os à vida do próprio Cristo.
A vida cristã, portanto, não pode ser entendida sem o filioque: é o Espírito do Pai e do Filho que nos torna participantes da vitória de Cristo sobre a morte. Sem isso, nossa fé perderia o vínculo com o Cristo vivo.
João 7.37-39 e Apocalipse 22: O rio de água viva que procede de Deus e do Cordeiro
Além de João 15 e 16 e Romanos 8, nossos pais luteranos também viram em João 7.37-39 e Apocalipse 22 textos centrais para a confissão do filioque. O Espírito é descrito como o “rio de água viva” que flui de Cristo e como o “rio da vida” que procede “do trono de Deus e do Cordeiro”. Assim como o verbo ekporeuetai em João 15.26 tem peso técnico, também o uso em Apocalipse 22 é compreendido pelos dogmáticos luteranos como confirmação de que o Espírito procede tanto do Pai quanto do Filho.
Distinção entre processão eterna (ontológica) e missão histórica (econômica)
As Escrituras revelam tanto o ser eterno de Deus quanto sua ação no tempo. Essa distinção é essencial para compreender o filioque:
- Processão eterna (ontológica): refere-se ao modo como o Espírito tem sua origem desde a eternidade, na vida íntima da Trindade. Em termos simples, é sobre quem o Espírito é em si mesmo, dentro do mistério da comunhão do Pai e do Filho. Quando confessamos que o Espírito procede do Pai e do Filho, não falamos de um acontecimento temporal, mas de uma realidade eterna, que caracteriza a identidade do Espírito Santo dentro da Trindade.
- Missão histórica (econômica): refere-se ao envio do Espírito no tempo, como promessa cumprida em Pentecostes e na vida da Igreja. Nesse aspecto, vemos o Espírito sendo enviado tanto pelo Pai quanto pelo Filho, cumprindo sua obra de testificar de Cristo, convencer do pecado e conceder fé e vida nova.
Essa distinção não divide duas realidades diferentes, mas protege o entendimento de que o que Deus é em si mesmo (ontologia trinitária) corresponde ao que Ele faz em favor do mundo (economia da salvação). Assim, a confissão filioque é fiel ao testemunho bíblico: o Espírito Santo não apenas vem do Pai, mas também do Filho, eternamente e na história, para nos conduzir à comunhão plena com Cristo.
Proteção contra heresias
Confessar o filioque não é apenas uma questão de precisão doutrinária, mas também de proteção da fé cristã contra erros graves. O filioque guarda a Igreja de cair em heresias antigas:
- Contra o modalismo, que confunde as pessoas da Trindade e anula as distinções eternas, o filioque preserva a comunhão do Pai, do Filho e do Espírito em sua eterna relação.
- Contra o arianismo, que negava a plena divindade do Filho, o filioque confessa que o Espírito procede igualmente do Filho, reconhecendo a mesma essência divina compartilhada.
- Contra pneumatologias autônomas modernas, que tentam pensar o Espírito separado de Cristo, o filioque garante que o Espírito é sempre o Espírito de Cristo, inseparável do Evangelho da cruz e da ressurreição.
Portanto, a confissão do filioque não apenas corresponde ao testemunho das Escrituras, mas também protege a fé da Igreja, garantindo que vivamos e creiamos sempre na verdade do único Deus trino, que age em perfeita unidade para a nossa salvação.
O Filioque nas Confissões Luteranas
Ao abrir o Livro de Concórdia, a primeira coisa que encontramos não são os escritos da Reforma, mas os Credos Ecumênicos: o Apostólico, o Niceno-Constantinopolitano e o Atanasiano. Isso é altamente significativo. A Reforma Luterana não surgiu como uma nova fé, mas como a reafirmação da fé cristã universal. O prefácio do Livro de Concórdia enfatiza: “Nada de novo intentamos fazer com esta obra de concórdia, e de forma nenhuma é intenção nossa afastar-nos, quer no conteúdo, quer nas expressões, da verdade divina”. A posição dos credos no início do Livro de Concórdia mostra, portanto, que a confissão trinitária é o fundamento de tudo. Eles servem como a base sobre a qual todas as outras confissões luteranas se erguem.
Nestes credos, o Filioque ocupa lugar de destaque. O Credo Apostólico, embora mais breve, confessa o Espírito Santo em íntima ligação com a vida da Igreja:
“Creio no Espírito Santo, a santa igreja católica, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna. Amém.”
Mesmo sem mencionar a processão, a relação do Espírito com a obra redentora de Cristo já está pressuposta.
O Credo Niceno-Constantinopolitano, na forma em que é confessado no Ocidente, proclama:
“E no Espírito Santo, Senhor e Doador da vida, o qual procede do Pai e do Filho; que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; que falou pelos profetas.”
Aqui está presente de forma clara o Filioque, afirmando que a eterna processão do Espírito não se limita ao Pai isoladamente, mas se dá na comunhão do Pai com o Filho.
No Credo Atanasiano, a doutrina é ainda mais precisa:
“O Espírito Santo é do Pai e do Filho; não feito, nem criado, nem gerado, mas procedente.”
Essa formulação mostra que o Filioque não é um acréscimo tardio e arbitrário, mas a maneira como a Igreja do Ocidente sempre confessou a relação trinitária, para preservar a unidade do Pai e do Filho como um único princípio da processão do Espírito.
A Confissão de Augsburgo, no Artigo I, mantém fielmente essa verdade. Ela inicia reafirmando a fé na Trindade, confessando:
“há uma só essência divina, que é chamada Deus e verdadeiramente é Deus e, não obstante, há três pessoas nessa única essência divina, igualmente poderosas, igualmente eternas: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo.”
Embora não use a palavra Filioque de forma explícita, a CA se apoia nos credos ecumênicos e, ao fazer isso, assume integralmente sua formulação trinitária, incluindo a processão do Espírito do Pai e do Filho.
A Apologia da Confissão de Augsburgo, ao defender a fé luterana contra as acusações de heresia, reafirma:
“sempre ensinamos e defendemos esse artigo; cremos que ele tem testemunho certo e firme na Sagrada Escritura, que não pode ser abalado. E sempre afirmamos que quem entende isso de outra maneira está fora da igreja de Cristo, é idólatra e insulta a Deus.”
Com isso, Melanchthon deixa claro que a doutrina trinitária, e com ela o Filioque, é critério de pertença à Igreja.
Nos Artigos de Esmalcalde, escritos em 1537, o próprio Lutero apresenta de maneira explícita a confissão trinitária incluindo o Filioque:
“Que o Pai não é nascido de ninguém, que o Filho é nascido do Pai e que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. [...] Não há discórdia nem controvérsia em torno desses artigos.”
Assim, Lutero reconhece que a questão não era ponto de debate entre os reformadores e que a Igreja, em sua tradição ocidental, sempre o confessara como parte da fé recebida.
Nos Catecismos de Lutero, embora não haja uma exposição sistemática da processão, a conexão entre o Filho e o Espírito é fortemente afirmada. No Catecismo Menor, ao explicar o Terceiro Artigo, Lutero enfatiza que o Espírito Santo é quem nos chama pelo Evangelho, ilumina com seus dons, santifica e conserva na verdadeira fé. Toda essa obra do Espírito é inseparável da obra de Cristo, o Filho. O Espírito não age independentemente, mas sempre em conexão com Cristo, sendo chamado inclusive nas Escrituras de “Espírito de Cristo”.
Na Fórmula de Concórdia, no Artigo VIII sobre a Pessoa de Cristo, encontramos uma formulação ainda mais detalhada:
“Pelo contrário, uma vez que Cristo, segundo a divindade, é a segunda pessoa na santa Trindade, e dele, bem como do Pai, procede o Espírito Santo, sendo, pois, e permanecendo, por toda a eternidade, o Espírito de Cristo e do Pai, não separado do Filho de Deus, segue-se que toda a plenitude do Espírito (como os Pais dizem) foi transmitida, pela união pessoal, a Cristo, segundo a carne, que está pessoalmente unida com o Filho de Deus.”
Aqui, além da clara confissão do Filioque, vemos como a cristologia e a pneumatologia se entrelaçam na teologia luterana, garantindo que o Espírito que procede do Pai e do Filho é o mesmo que habita em Cristo segundo a carne, unindo inseparavelmente a obra trinitária à obra redentora.
Assim, para os luteranos, o Filioque não é uma questão periférica, tampouco uma “adiáfora” opcional. Ele está no coração da fé confessada desde os credos ecumênicos, passa pelas declarações da Reforma e molda a compreensão catequética do povo de Deus. Confessar que o Espírito procede do Pai e do Filho é confessar a unidade do Deus Triúno e a inseparável relação entre o Filho e o Espírito na vida da Igreja.
O Filioque: não é uma questão de adiáfora
Talvez alguns imaginem que o filioque seja apenas uma questão histórica ou até um detalhe litúrgico que poderia ser colocado entre as coisas indiferentes, os chamados adiáfora. Mas não é assim.
Adiáfora são práticas ou costumes que a Palavra de Deus nem ordena nem proíbe: a forma dos ritos, o uso de paramentos, a melodia de um hino, por exemplo. São aspectos que podem variar conforme o tempo e o lugar, desde que a confissão do Evangelho permaneça clara e pura. A Reforma Luterana defendeu que, nessas coisas, há liberdade cristã, sempre em amor e edificação do próximo.
O filioque, porém, não se encontra nessa categoria. Ele não trata de cerimônias externas, mas da própria identidade do Deus que confessamos e adoramos. Quando dizemos que o Espírito Santo “procede do Pai e do Filho”, não estamos acrescentando um detalhe cultural ou acidental, mas afirmando o mistério eterno da comunhão entre o Pai e o Filho. Essa confissão protege a fé da Igreja de graves distorções, pois garante que o Espírito é sempre o Espírito de Cristo, inseparável do Evangelho da cruz e da ressurreição.
Portanto, o filioque não é assunto periférico ou opcional. Ele pertence ao coração do credo da Igreja e está no centro da nossa fé trinitária. Retirá-lo ou relativizá-lo seria enfraquecer a confissão da plena divindade do Filho e abrir espaço para interpretações que separam o Espírito de Cristo ou reduzem a unidade da Trindade.
Por isso, reafirmamos com firmeza e amor: não se trata de uma questão de adiáfora, mas da fé cristã em seu núcleo mais profundo, da verdade sobre quem é o nosso Deus e como Ele se revela e age em favor da nossa salvação. Confessar o filioque é confessar a integridade do Evangelho e a inseparável unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Conclusão
Ao longo desta reflexão vimos que o filioque não é um detalhe marginal, mas uma confissão que toca o próprio centro da fé cristã. Ele nasce do testemunho das Escrituras, que apresentam o Espírito Santo como Aquele que procede do Pai, mas é também enviado e dado pelo Filho. Por isso é chamado de “Espírito de Cristo”, pois age sempre para glorificar o Filho e conduzir-nos a Ele, mantendo inseparável a unidade da obra trinitária.
Historicamente, o termo surgiu como resposta às heresias que ameaçavam a verdade da Trindade. Ao confessar que o Espírito procede do Pai e do Filho, a Igreja do Ocidente protegeu a fé contra o modalismo, que confundia as pessoas divinas; contra o arianismo, que negava a plena divindade do Filho; e contra interpretações que poderiam transformar o Espírito em uma força autônoma, desconectada de Cristo. O filioque, portanto, não apenas preserva a unidade e a igualdade das três pessoas da Trindade, mas também assegura que a ação do Espírito seja sempre cristocêntrica, inseparável da obra da cruz e da ressurreição.
As Confissões Luteranas, desde os credos ecumênicos até a Confissão de Augsburgo e os catecismos de Lutero, testemunham de forma clara que esta também é a fé dos luteranos. O Livro de Concórdia, ao colocar em primeiro lugar os credos apostólico, niceno e atanasiano, nos lembra que não começamos uma nova fé, mas permanecemos confessando a fé da Igreja una, santa e apostólica. Nessa fé, o filioque ocupa lugar central, pois confessa a identidade do Deus Triúno tal como Ele se revelou. Não há espaço para tratá-lo como opcional ou indiferente.
Não se trata, portanto, de uma questão de adiáfora. Adiáfora são práticas externas que podem variar conforme o tempo e a necessidade pastoral. O filioque, porém, é confissão da essência do próprio Deus. Relativizá-lo seria relativizar a verdade da Trindade e, com isso, enfraquecer a própria confissão do Evangelho. Mantê-lo, por outro lado, é permanecer firmes na revelação de Deus e no testemunho da Igreja, confessando que somente o Espírito que procede do Pai e do Filho pode dar-nos Cristo, e somente em Cristo temos a vida eterna.
Escrevo tudo isso, talvez em um texto um pouco longo, com o desejo de ajudar a refletir e relembrar verdades essenciais para a nossa fé. O propósito não é criar debates ou polêmicas, mas apenas confessar, com amor e fidelidade, aquilo que nós, luteranos, sempre dissemos e sempre queremos continuar a dizer.
Confessar o filioque é, ao mesmo tempo, um ato de fidelidade à Palavra de Deus e um gesto de amor à Igreja, que precisa ouvir de forma clara quem é o Deus em quem cremos, adoramos e invocamos: o Pai que nos criou, o Filho que nos redimiu, e o Espírito Santo que procede do Pai e do Filho e nos santifica na fé.
A Ele seja a glória, agora e para sempre. Amém.
Rev. Filipe Schuambach Lopes
BIBLIOGRAFIA:
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BECKWITH, Carl L. The Holy Trinity. Confessional Lutheran Dogmatics. Ft. Wayne, Indiana: The Luther Academy, 2016.
DULLES, Avery. The Filioque: What is at Stake? Concordia Theological Quarterly, v. 59, n. 1–2, p. 29–41, Jan.–Apr. 1995.
LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução de Arnaldo Schüler. Porto Alegre: Concórdia, 2006.
MOLDENHAUER, Aaron. A Lutheran Perspective on the Filioque. Concordia Theological Quarterly, v. 87, n. 1–2, p. 65–86, 2023.
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