terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Reflexão sobre o uso do termo "missa" no contexto luterano


Há um grupo de jovens na internet que, movido pelas melhores intenções, mas de forma equivocada e potencialmente perigosa, utiliza o termo "missa" para designar o momento em que os luteranos se reúnem para o culto. Por isso, quero propor, por meio deste texto, uma reflexão sobre a adequação do termo "missa" à luz das confissões luteranas e do contexto brasileiro da Igreja. Para isso, utilizo um texto do Rev. Dr. John R. Stephenson, em The Lord’s Supper,[1] como base para esclarecer essa questão.

O termo “missa”
Ao examinar as confissões luteranas, em especial a Confissão de Augsburgo e sua Apologia, notamos que os reformadores preservaram o termo “missa”. Isso fica evidente no artigo XXIV da Confissão de Augsburgo (Da missa) e no artigo XXIV da Apologia (Sobre a Missa).

No entanto, os Artigos de Esmalcalde não compreendem mais essa expressão como representativa da liturgia do culto purificada pela Reforma Luterana.[2] Após a ruptura de Lutero com Roma, seu uso do termo "missa" foi inconsistente. Na década de 1530, Lutero desenvolveu uma aversão clara ao termo, que passou a ser associado ao conceito de extra Romanisticum — a ideia de que o celebrante (com ou sem a congregação) oferece o corpo e sangue de Cristo como um sacrifício propiciatório ao Pai.

Diante disso, os luteranos devem seguir o conselho de Daniel Preus e evitar seu uso para se referir à Santa Ceia.[3] Essa precaução protege a clara distinção luterana de que o Sacramento do Altar não é uma obra humana oferecida a Deus, mas um presente divino dado para a nossa salvação.

O termo “Culto” ou “Serviço Divino” (Hauptgottesdienst)
Em contraste, o uso dos termos “Culto” ou "Serviço divino” reflete melhor a teologia luterana de adoração. Alguns pensam que Friedrich Lochner, em seu estudo Der Hauptgottesdienst der evangelisch-lutherischen Kirche (O Culto Principal da Igreja Evangélica-Luterana) de 1895, introduziu o uso do termo "Hauptgottesdienst" como sinônimo para o momento em que o povo de Deus se reúne para receber os dons de Cristo na Santa Ceia. Contudo, essa compreensão já estava presente na Agende de 1844, elaborada por seu mentor, Löhe, e foi reforçada por autores como Paul Graff em sua obra Geschichte der Auflösung der alten gottesdienstlichen Formen in der evangelischen Kirche Deutschlands (História da dissolução das antigas formas litúrgicas na Igreja Evangélica da Alemanha).

O termo “Hauptgottesdienst” (Culto Principal) é adequado porque reflete a definição de Gottesdienst (culto divino) apresentada na Apologia da Confissão de Augsburgo, artigo IV. O texto latino da Apologia (IV.49) define fé como λατρεία (latreia), ou seja, a adoração que recebe os dons de Deus. Justus Jonas, na tradução alemã, descreve fé como "o tipo de Gottesdienst onde eu me deixo ser servido". A narrativa de Lucas 7.36–50 ilustra esse conceito, ao apresentar a mulher penitente que recebe o perdão de Cristo, exercendo a maneira mais elevada de adorar a Cristo: “este é o culto máximo de Cristo”. (Apologia IV.154).

Nesse sentido, o “Culto” ou “Serviço Divino" é compreendido como um ato de monergismo divino, em que Deus serve ao seu povo com seus dons. Ao mesmo tempo, a resposta apropriada da igreja a esses dons inclui louvor, amor e gratidão, como demonstra a consideração de Melanchthon sobre a história da mulher penitente (Ap IV).

O “culto principal” e a Santa Ceia
Falar do "Culto Principal” (Hauptgottesdienst) ressalta que a Santa Ceia é o único Culto regular explicitamente instituído pelo próprio Senhor. Durante o culto, Deus nos serve através do rito que ele mesmo instituiu na véspera de sua paixão. Nesse momento, participamos de uma Santa Ceia e de uma Santa Comunhão em seu Corpo e Sangue sacrificados, recebendo esses dons como uma manifestação plena de sua graça e amor.

Ao mesmo tempo, somos chamados a servir a Deus em resposta, por meio do agradecimento, do louvor e de uma vida dedicada à Sua glória. Esse aspecto responde à linguagem da “Eucaristia”, que significa “ação de graças”.

Conclusão
Portanto, à luz das confissões luteranas e da teologia confesional luterana, o termo “missa” carrega implicações teológicas que podem distorcer a compreensão correta da adoração luterana. Em vez disso, “Culto” ou “Serviço Divino” são termos mais apropriados, pois refletem fielmente a ênfase luterana na ação de Deus em favor do seu povo, enquanto este responde em louvor e gratidão.

Além disso, podemos perceber, conforme os Artigos de Esmalcalde que o termo "missa" não reflete mais com fidelidade a teologia luterana de culto. Deve-se considerar também que estamos em um país onde o catolicismo romano ainda exerce grande influência, inclusive no vocabulário. Assim, no Brasil, quando usamos o termo “missa” é comum que ele seja imediatamente associado à Igreja Católica Apostólica Romana, e não à Igreja Luterana. Por isso, devemos respeitar as consciências dos nossos irmãos e irmãs. Como vimos, o melhor termo para se usar é "Culto" ou "Serviço Divino", pois eles refletem de maneira clara toda a beleza da prática e da teologia do Culto Luterano.

Desejo que esta reflexão ajude na compreensão dos termos e no cuidado que devemos ter ao usá-los, para que possamos sempre expressar de forma fiel a riqueza e a profundidade da teologia e prática luteranas.

Rev. Filipe Schuambach Lopes

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[1] STEPHENSON, John R. The Lord’s Supper. Confessional Lutheran Dogmatics, Vol. 12. Northville, SD: The Luther Academy, 2003.
[2] Lutero, sobre a missa, afrma: “Que a missa deve ser considerada a maior e mais hedionda abominação no papado, pois se opõe direta e violentamente a esse artigo principal. No entanto, ela foi, acima e antes de todas as outras idolatrias papais, a mais elevada e bela. Pois afirma-se que esse sacrifício ou obra da missa (ainda que oferecido por um indivíduo mau) liberta os seres humanos de seus pecados, tanto aqui, em vida, como além, no purgatório. Mas isso, conforme dito acima, apenas o Cordeiro de Deus deve e tem de fazer” (Artigos de Esmalcalde, Parte Dois, Segundo Artigo).
[3] Para mais, leia Daniel Preus,“Luther and the Mass: Justification and the Joint Declaration,” LOGIA: A Journal of Lutheran Theology X/4 (Reformation 2001): 16.

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