quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Comemoração de Agostinho de Hipona, Pastor e Teólogo - 28 de agosto

 

Agostinho, Bispo de Hipona, 430

Aurelius Augustinus, geralmente conhecido como Santo Agostinho, nasceu na cidade de Tagaste, hoje conhecida como Souk Arrhas, na Argélia, em 13 de novembro de 354. Sua mãe, Mônica, era cristã e tentou criá-lo na fé cristã, mas sem sucesso. Ele frequentou a escola em Cartago, onde foi um estudante sério, mas acabou se convertendo ao maniqueísmo, uma religião dualista de origem persa que era popular na época. Ele teve um filho com uma concubina, a quem deu o nome de Adeodato ("Presente de Deus").

Em algum momento depois de 383, Agostinho foi para Roma, onde ensinou retórica e continuou seus estudos. Em 384, ele foi para Milão para lecionar, e lá foi gradualmente atraído para a fé católica. Primeiro, ele abandonou o maniqueísmo para estudar o neoplatonismo e, depois, caiu sob a influência de Santo Ambrósio, o Bispo de Milão. Após uma grande luta interna, suas dúvidas foram dissipadas, e Ambrósio o batizou na Vigília Pascal de 387. Sua mãe faleceu enquanto os dois estavam a caminho de volta ao Norte da África. Lá, Agostinho viveu uma espécie de vida monástica por vários anos com um grupo de amigos. Em 391, durante uma visita à cidade de Hipona, foi escolhido contra sua vontade pelos cristãos locais para ser seu pastor. A partir de então, Hipona se tornou sua residência até sua morte. Ele foi ordenado sacerdote e, quatro anos depois, consagrado bispo, tornando-se o Bispo de Hipona, a segunda cidade mais importante da África em termos eclesiásticos, que hoje não existe mais. Agostinho serviu como bispo por trinta e cinco anos. Mesmo com muitas viagens e responsabilidades, ele produziu uma vasta quantidade de escritos.

Santo Agostinho foi um dos grandes mestres da Igreja, e pensadores cristãos, tanto católicos quanto protestantes, reconhecem sua importância como teólogo e defensor da fé cristã. Entre seus muitos escritos, os mais famosos são as “Confissões” (c. 400) e “A Cidade de Deus” (após 412). As “Confissões” narram sua vida e conversão; “A Cidade de Deus” contém suas visões sociais e políticas, motivadas pelo colapso de Roma; uma defesa do cristianismo; e uma visão da sociedade cristã ideal. Ele também escreveu várias obras mais puramente teológicas, incluindo ataques ao maniqueísmo e polêmicas contra heresias como o donatismo e o pelagianismo. Alguns de seus tratados foram comentários sobre partes das Escrituras. Seus livros, sermões e cartas foram publicados em muitas línguas e edições, e há uma vasta literatura sobre ele. Ele estabeleceu a regra monástica de Santo Agostinho, e mais de um milênio depois, Martinho Lutero se tornou um monge da Ordem Agostiniana.

Os últimos anos de Santo Agostinho foram marcados pelo caos causado pela invasão das tribos vândalas no Norte da África. Cidade após cidade foi destruída, igrejas foram queimadas e o clero foi disperso. Durante o cerco dos vândalos a Hipona, em 430, Santo Agostinho foi acometido por uma febre e faleceu em 28 de agosto de 430, data em que é atualmente comemorado. Seu corpo foi posteriormente levado para a Sardenha e, no meio do século VIII, foi transferido novamente para a capital da Lombardia, Pavia, onde agora repousa em um esplêndido monumento de mármore na Igreja de São Pedro em Ciel d’Oro.

LEITURA

(De Confissões de Agostinho)

Quando essas severas reflexões me fizeram emergir do íntimo e expuseram toda a minha miséria à contemplação do coração, desencadeou-se uma grande tempestade portadora de copiosa torrente de lágrimas. Para dar-lhes vazão com naturalidade, levantei-me e afastei-me de Alípio, o necessário para que sua presença não me perturbasse, pois a solidão me parecia mais apropriada ao pranto. Alípio percebeu o estado em que me encontrava: o tom da voz embargada pelas lágrimas, ao dizer-lhe alguma coisa, havia-me traído. Levantei-me; ele permaneceu atônito, onde estávamos sentados. Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões, como sacrifício agradável a ti. E muitas coisas eu te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: “E tu, Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Não te lembres de nossas culpas passadas”! Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade?”

Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: “Toma e lê, toma e lê”. Mudei de semblante e comecei com a máxima atenção a observar se se tratava de alguma cantilena que as crianças gostam de repetir em seus jogos. Não me lembrava, porém, de tê-la ouvido antes. Reprimi o pranto e levantei-me. A única interpretação possível, para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontrasse. Tinha ouvido que Antão, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem lida fosse pessoalmente dirigida a ele: “Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me”. E logo, através dessa mensagem, converteu-se a ti. Apressado, voltei ao lugar onde Alípio ficara sentado, pois, ao levantar-me, havia deixado aí o livro do Apóstolo. Peguei-o, abri e li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne”. Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza.

- AGOSTINHO, Confissões.  A Conversão: Toma e lê! In Patrística: Santo Agostinho, Confissões. Editora Paulus.

Cor Litúrgica: Branco

Prefácio Próprio: A Santíssima Trindade

Leituras Bíblicas:

                + Primeira Leitura: Provérbios 3.1-7

                + Salmodia: Salmo 119.89-104

                + Segunda Leitura: 1Coríntios 2.6-10; 13-16

                + Santo Evangelho: João 17.18-23

 ORAÇÃO DO DIA

Ó Senhor Deus, luz das mentes que te conhecem, vida das almas que te amam e força dos corações que te servem, concede-nos força para seguir o exemplo de teu servo Agostinho de Hipona, de modo que, conhecendo a ti, possamos te amar verdadeiramente, e amando a ti, possamos te servir inteiramente – pois servir-te é a perfeita liberdade; através de Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.

 —  As informações sobre história, cor litúrgica, prefácio próprio e leituras bíblicas da comemoração foram retiradas do livro Festivals and Commemorations: handbook to the calendar in Lutheran Book of Worship de Philip H. Pfatteicher, publicado pela Augusburg Publishing House, 1980. A Oração do Dia é retirado de Treasury of Daily Prayer, publicado pela Concordia Publishing House, 2008. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Os Meios da Graça

O que é um meio de graça?

A teologia luterana não aborda a questão dos sacramentos, ou meios da graça, partindo de uma definição geral ou de um conceito universal. A essência dos sacramentos não pode ser captada se forem vistos apenas como fenômenos religiosos ou rituais que também aparecem em outras religiões. Embora outras religiões possam ter práticas semelhantes ao batismo e à Ceia do Senhor, como o uso da água e refeições cultuais, não existe uma ideia universal compartilhada por trás dessas práticas. Os sacramentos cristãos são sui generis, sem comparação possível, pois foram instituídos exclusivamente pelo Filho de Deus.

Ao contrário da Igreja Católica Romana[2] e da tradição reformada,[3] a Igreja da Confissão de Augsburgo não desenvolve sua doutrina sacramental a partir de uma definição geral. A Confissão de Augsburgo aborda os sacramentos de maneira particular, tratando cada um deles individualmente. A doutrina dos sacramentos, portanto, não é deduzida de um conceito a priori, mas busca uma síntese através da observação indutiva. Isso é mais evidente no fato de que os luteranos nunca definiram com precisão o número de sacramentos. A Igreja de Roma ensina que há exatamente sete sacramentos, enquanto Genebra reconhece apenas dois. No luteranismo, o número de sacramentos pode variar (de 2 a 4), dependendo de como definimos o que é um sacramento.[4] Isso se deve simplesmente ao fato de que Cristo não instituiu um sacramento abstrato, mas instituiu a Ceia do Senhor, o Batismo, a Confissão, e o Ofício Pastoral para ministrá-los e proclamar o Evangelho. É importante lembrar que o termo “sacramento” não aparece no Novo Testamento com seu significado teológico.[5] Por isso, a ordem dos artigos na Confissão de Augsburgo revela a maneira correta do luteranismo abordar essa questão: Artigo V: do ministério da pregação; Artigo IX: do Batismo; Artigo X: da Ceia do Senhor; Artigo XI:  da Confissão de Pecados; e Artigo XIII: do uso dos Sacramentos. Só no Artigo XIII é que se diz algo geral e comum sobre todos os sacramentos tratados anteriormente, mas mesmo assim não é dada uma definição abrangente ou limitante. Esse ensino, de acordo com o princípio do sola scriptura, impede que apliquemos categorias humanas aos sacramentos, forçando-os a se encaixar em um “molde sacramental”. Isso não significa que não sejam necessárias algumas definições delimitadoras e esclarecedoras. Lutero cita uma frase do pai da Igreja, Agostinho, no Catecismo Maior, tanto no contexto do Batismo quanto na Ceia do Senhor: “Accedat verbum ad elementum et fit sacramentum: o que significa: ‘Quando a palavra se junta ao elemento ou substância natural, faz-se o sacramento’”. [6] No entanto, nossos documentos confessionais não excluem, com base nessa fórmula, a Confissão, mesmo que não envolva um elemento físico, nem negam a natureza sacramental do Ofício Pastoral. Na Apologia (art. XIII) lemos:

“Autenticamente sacramentos são, portanto, o batismo, a ceia do Senhor e a absolvição, que é o sacramento da penitência. Pois esses ritos têm o mandamento de Deus e a promessa da graça, que é própria do Novo Testamento. [...] Os sacerdotes não são chamados para realizar algum sacrifício pelo povo como era na lei, visando merecer o perdão dos pecados para o povo por meio dele, mas são chamados para ensinar o evangelho e administrar os sacramentos ao povo. [...] Se a ordem for entendida como referente ao ministério da palavra, não relutaremos em chamar a ordem de sacramento. Pois o ministério da Palavra tem mandamento divino e magníficas promessas. [...] Se a ordem for entendida dessa maneira, não nos recusaremos a chamar de sacramento nem a imposição de mãos. Pois a igreja tem o mandamento de constituir ministros, pelo qual devemos ser profundamente gratos, porque sabemos que Deus aprova esse ministério e nele está presente” (Ap, Art. XIII, p. 250-251).

Nós encontramos na Bíblia a instituição de Cristo para cada sacramento.

“Portanto, vão e façam discípulos... batizando-os... ensinando-os” (Mt 28.19-20). “Façam isto em memória de mim” (Lc 22.19; 1Co 11.24). “Recebam o Espírito Santo. Se de alguns vocês perdoarem os pecados, são-lhes perdoados; mas, se os retiverem, são retidos” (Jo 20.22-23). É notável que essas passagens, que servem de base doutrinária para os sacramentos, também fundamentam a ordenação ao ministério e o envio (missio). Sacramentos e o ofício pastoral não podem e não devem ser separados. Observamos também que, embora a Bíblia atribua várias promessas ao casamento, à doação de esmolas e à oração, esses atos não cumprem os requisitos para serem considerados sacramentos: “Sinais e testemunhos da vontade de Deus para conosco, mediante os quais Deus leva os corações a crerem” (Ap. Art. XIII, p.249).  A oração é um ato sacrificial, uma ação que parte do ser humano em direção a Deus, enquanto os sacramentos, por outro lado, são ações graciosas e salvadoras de Deus para conosco. Por isso, o convite luterano ao altar é sempre para a mesa da Ceia do Senhor, onde recebemos objetivamente os dons da graça de Deus, contrastando com a tradição evangélica, onde o chamado ao altar é uma resposta sinergística, uma decisão pessoal ou uma oração oferecida a Deus. Também não devemos, de forma alguma, confundir dons espirituais com meios de graça, pois Cristo não instituiu os chamados dons espirituais para a Igreja em um sentido restrito, nem vinculou a eles qualquer promessa de transmissão da graça. Há uma diferença tão grande entre os meios de graça e os dons espirituais quanto entre o doador do presente e os presentes.

Ao compreendermos a singularidade de cada sacramento, iremos desfrutar corretamente de todos os dons de Deus que Cristo concedeu à Igreja. Ele deu muitos dons porque sabe que precisamos de cada um deles. Não podemos colocá-los em oposição uns aos outros ou classificá-los por importância. Considero problemático se cada sacramento for visto apenas como uma forma específica da palavra (por exemplo, ao se falar da palavra como sacramento básico). Isso corre o risco de nivelar e empobrecer os tesouros concedidos à Igreja. Portanto, mesmo que falemos de termos como “sacramento audível” (sacramentum audibile) e “palavra visível” (verbum visibile), eles não devem nos enganar. É verdade que não há nada de especial nos elementos que são abençoados em si mesmos. Por isso, é precisamente a palavra, quando unida à água, ao pão e ao vinho, bem como às ondas sonoras, que os torna sacramentos e nos concede o mesmo dom de perdão dos pecados, gerando e fortalecendo a fé. No entanto, não devemos igualá-los completamente. O Batismo é o sacramento da porta, e não é repetido, enquanto a Ceia do Senhor deve ser recebida semanalmente como alimento para a vida e caminha do cristão na terra. A confissão concede o perdão dos pecados, mas não o Corpo e o Sangue de Cristo. O que dizemos sobre o Batismo, portanto, não se aplica necessariamente à Ceia do Senhor. Assim, por exemplo, aceitamos o Batismo dos reformados como válido, mas não consideramos sua Ceia do Senhor como válida. Da mesma forma, por exemplo, a absolvição pode ser dada por um leigo, mas não reconhecemos o conceito de uma “Ceia do Senhor de emergência”. Para nós, ouvir apenas a pregação não é suficiente; também precisamos da Ceia do Senhor semanalmente. Portanto, o melhor é desfrutar e admirar a particularidade de cada meio de graça e receber graça sobre graça.

Cristologia e Meios da Graça

Na exposição da teologia luterana, a cristologia, a pessoa e a obra de Cristo precedem a doutrina dos meios de graça. Isso não é apenas uma questão de método expositivo, mas contém um profundo significado teológico. Os meios de graça recebem seu significado do fato de que “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14) A segunda pessoa do Deus eterno, imutável e invisível assumiu a natureza humana no ventre da Virgem Maria. O Espírito de Deus entra na matéria, o Criador no criado, e o Invisível se torna visível. A maneira como Deus realiza a história da salvação é sempre teologia da cruz, ou seja, o poder oculto na fraqueza, a glória na insignificância, o Espírito na matéria, a fé em vez da experiência, e a direção é sempre de cima para baixo. O princípio do conhecimento de Deus no luteranismo é: Deus absconditus é Deus revelatus somente e unicamente naquele que é Deus incarnatus. Portanto, não temos nenhum conhecimento direto do Deus Triúno, nem acesso ao Deus oculto, exceto em Cristo encarnado. Ao confessar isso, afirmamos que Deus não deseja se relacionar com as pessoas de outra maneira que não seja por meio dos meios da graça. A encarnação é um juízo contra todo misticismo que busca se aproximar do Deus nu, sem intermediários. Esse modelo encarnacional continua também nos meios de graça dentro da congregação.

A vida de Cristo, seu sofrimento vicário e morte na cruz, bem como sua ressurreição, foram, de fato, a absolvição de todo o mundo. Embora o pecado ainda atue no mundo, o coração de Deus agora é gracioso. Essa disposição graciosa de Deus significa justificação universal. A reconciliação foi realizada por Deus de uma vez por todas, mas agora ele deseja compartilhar seus frutos, para que ninguém fique sem eles. Por isso, ele instituiu os meios pelos quais nos oferece e concede essa graça. Por isso, no luteranismo chamamos os sacramentos de meios de graça, media salutis, porque eles nos transmitem Cristo e seus dons. Os sacramentos não criam uma nova graça, mas nos distribuem a graça já existente. Os sacramentos não são nossos sacrifícios ou promessas de aliança a Deus. Eles não são uma extensão do Decálogo para nós. Não são lei, mas evangelho. Embora o imperativo divino nos obrigue a seguir, por exemplo, o mandamento do batismo e a ordem do Senhor, eles não são exigências da lei para nós. Pois a obediência à lei é completamente diferente de seguir a ordenança graciosa de Cristo, pela qual Ele prometeu nos dar seus dons. Pois, embora não possamos cumprir a lei, temos o evangelho como segurança. Mas, se desprezamos o evangelho e os meios pelos quais ele é trazido a nós, tal como Cristo mesmo os instituiu, resta apenas a condenação. Lutero explica de maneira precisa a relação entre a obra da cruz e a distribuição de seus frutos. Ele responde onde, então, estamos verdadeiramente “aos pés da cruz”:

“Tratamos do perdão dos pecados de duas maneiras. Primeiro, como ele é conquistado e alcançado. Segundo, como é distribuído e dado a nós. Cristo o conquistou na cruz, é verdade. Mas ele não o distribuiu ou deu na cruz. [...] Ele o conquistou de uma vez por todas na cruz. Mas a distribuição ocorre continuamente, antes e depois, do começo ao fim do mundo. [...] Se agora eu procuro o perdão dos pecados, [...] o encontrarei no sacramento ou no evangelho, a palavra que distribui, apresenta, oferece e me dá aquele perdão que foi conquistado na cruz” (Contra os Profetas Celestiais, LW, 40, 213.)

Cristo instituiu os sacramentos para que, neles e por meio deles Cristo possa atuar neste mundo. Sua promessa de estar conosco todos os dias até o fim do mundo (cf. Mt 28.20) não é uma presença vaga, mas temos Cristo, que conhecemos, cheiramos, provamos e cuja voz ouvimos. Quando falamos dos sacramentos, estamos sempre falando de Cristo. Neles, Cristo está realmente presente. Por isso, o slogan luterano é EST! Cristo está realmente presente nos meios de graça tanto em sua natureza divina quanto humana. Os Santos Sacramentos são a ação monergística de Deus por meio de seu ministro da Palavra. Cristo batiza, Cristo distribui seu Corpo e Sangue, Cristo proclama o perdão dos pecados. Os sacramentos são, portanto, a própria ação graciosa de Deus.

Os sacramentos têm uma base objetiva, pois são a ação de Deus por meio de um instrumento humano. Recebemos e possuímos pela fé o dom de Cristo e o perdão dos pecados nos meios da graça. Fé e sacramentos andam unidos. Não de modo que a origem e a manutenção da fé estejam separadas deles, mas sim que, por meio dos sacramentos, a fé é gerada. Pois os meios da graça são sinais da graça de Deus, que não apontam para algo fora de si mesmos, mas oferecem e concedem o que prometem. Eles têm o poder de gerar fé, que por sua vez se apega a Cristo e o possui nos sacramentos. Assim, a justificação pela fé está ligada à justificação universal, embora entre elas deva ser mantida a distinção entre causa e efeito. A graça, afinal, sempre precede a fé.

Pneumatologia e Meios da Graça

Ao longo da história da Igreja, um dos grandes problemas associados ao movimento do “entusiasmo” ou “espiritualismo” tem sido a separação entre Cristo e o Espírito Santo. É importante lembrar o axioma: ubi Spiritus Sanctus ibi Christus, ubi Christus ibi Spiritus Sanctus (“onde está o Espírito Santo, ali está Cristo; onde está Cristo, ali está o Espírito Santo”).[7] Devemos ter em mente que aquele que foi concebido pelo Espírito Santo e sobre quem a pomba desceu, também enviou o Espírito Santo à Igreja. Esses eventos que indicam o envio temporal do Espírito refletem a eterna origem do Espírito a partir do Pai e do Filho (filioque). O Espírito Santo é o Espírito de Cristo. Portanto, os meios da graça são também instrumentos do Espírito Santo. O Espírito não vem até nós como uma pomba ou como línguas de fogo, mas através dos meios que Cristo estabeleceu.

Ainda hoje, enfrentamos o legado do dualismo platônico de mil anos, que separa espírito e matéria. É difícil para nós, de forma racional, entender como o Espírito pode estar presente em substâncias físicas, como água ou pão e vinho. Por isso, devemos constantemente revisar a “Theologia Crucis” (Teologia da Cruz). Deus não vem até nós diretamente em sua majestade nua, mas se oculta aos nossos olhos. O Batismo, a Ceia, a pregação do evangelho e a Confissão são os meios através dos quais o evangelho é trazido de forma material para seres materiais. Isso também tem uma profunda dimensão antropológica, pois não somos apenas seres espirituais, mas temos corpo e alma. Portanto, Deus teve que se tornar carne para que pudéssemos encontrá-lo. Da mesma forma, o Espírito Santo opera através da matéria no meio de seres materiais.

A tarefa do Espírito Santo é chamar e reunir a Igreja,[8] que é o povo de Deus, o corpo de Cristo e o templo do Espírito Santo (cf. 1Co 6.19). É através dos meios da graça que a Igreja é formada e preservada.[9] A Confissão de Augsburgo (art. VII) afirma que a verdadeira Igreja, Una Sancta, está onde o evangelho é pregado corretamente e os sacramentos são administrados corretamente. A eclesiologia luterana é, portanto, encarnacional, ou seja, sacramental, diferenciando-se do modelo católico externo e hierárquico e do modelo reformado interno e espiritualista.

Escatologia e Meios da Graça

Os meios da graça sempre contêm um elemento escatológico. Eles não estão limitados por restrições de tempo e lugar. Eles nos conectam tanto ao Calvário quanto ao juízo final. Os sacramentos estão ligados à lembrança da história da salvação, a anamnesis[10] (por exemplo, a oração de batismo de Lutero menciona o dilúvio, a travessia do Mar Vermelho, o batismo de Jesus no Jordão,[11] ou as palavras da liturgia da ceia: “Na noite em que foi traído”). Os sacramentos apontam para o passado, mas também olham para o futuro, para o juízo final e o banquete nupcial do Cordeiro. No batismo, já ascendemos para uma nova vida; a absolvição que recebemos é um prelúdio da declaração de liberdade no juízo final; e na mesa da ceia, participamos agora da refeição messiânica. Assim, a teologia sacramental mantém uma compreensão bíblica dos últimos tempos, evitando especulações sobre arrebatamentos e reinos milenaristas. Também entendemos que o anúncio de Jesus sobre a iminente chegada do reino de Deus não foi um desastre, apesar de já ter passado dois mil anos. As orações “Maranatha” na liturgia da Ceia[12] nos lembram que Cristo veio e continua a vir para o meio de sua Igreja. Ele nunca nos abandonou! Vivemos agora – não ainda a vida celestial – através dos Sacramentos. Ainda pela fé, mas em breve também pela visão.

A teologia sacramental nunca deve se restringir às “salas de aula” ou se tornar uma “teologia acadêmica”. Os sacramentos não pertencem propriamente à academia, mas aos espaços sagrados da Igreja. Nunca entenderemos os sacramentos corretamente se não passarmos semanalmente pela porta da igreja, ao lado da pia batismal, ouvirmos a Palavra de Deus no púlpito e nos colocarmos ao redor do altar para receber o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo. Ali, o Cristo encarnado, com todos os anjos e arcanjo e a companha celestial, está presente conosco. Portanto, a correta teologia ortodoxa surge de um ensino correto, a orto didaskalia, à verdadeira adoração, orto doxía. À medida que começamos a entender que Cristo está realmente presente através dos sacramentos, descobrimos as riquezas da liturgia antiga, a verdadeira piedade, a alegria na e da adoração.


[2] Sobre a visão romana de “meios da graça”, Pieper afirma: “Roma faz-nos acreditar que a graça conquistada por Cristo leva Deus a infundir no homem uma quantidade suficiente de graça (gratia infusa), ou seja, santificação e boas obras - e isso, é importante notar, com a cooperação constante do homem (Concílio de Trento, Sessão VI, cânon 4) - de modo que ele é capacitado a realmente merecer (vere mereri, Concílio de Trento, Sessão VI, cânon 32) a justificação e a salvação, seja de forma congrua (de acordo com justiça ou liberalidade) ou de forma condigna (por mérito real). Segundo Roma, Cristo conquistou apenas a quantidade de graça necessária para que os homens possam conquistar a salvação por si mesmos. Portanto, os meios da graça no sentido papista não são meios pelos quais Deus oferece à fé o perdão completo dos pecados e a salvação conquistada por Cristo, e através dessa oferta também opera a fé no homem ou fortalece a fé já presente, mas são meios para incitar e ajudar o homem a tais esforços virtuosos, sob direção romana, que podem gradualmente e em medida constantemente crescente (Concílio de Trento, Sessão VI, cap. 16, cânon 32) conquistar a graça de Deus para ele. [...] Com tal ensino, os meios da graça são rebaixados a meios que mantêm o homem na incerteza sobre a posse do favor de Deus”.

[3] Já em relação à visão calvinista, Pieper afirma: “Segundo o ensino dos calvinistas, como a graça salvadora é particular, não existem meios de graça para aqueles a quem a graça de Deus e o mérito de Cristo não se estendem. Pelo contrário, para essas pessoas, os meios de graça são considerados meios de condenação. [...] Os calvinistas também não têm meios de graça para os eleitos. Os crentes são expressamente orientados por Calvin a não determinar sua predestinação a partir da Palavra externa, ou seja, do chamado universal (vocatio universalis) que ocorre através da Palavra exterior (per externum praedicationem), mas a partir do chamado especial (vocatio specialis), que consiste em uma iluminação interior pelo Espírito Santo. [..] essa ‘iluminação interior’ não é causada pelos meios de graça; é realizada imediatamente pelo Espírito Santo”.

[4] “Discutir o número de sacramentos é inútil até que se chegue a um acordo sobre a definição de um sacramento. A ação do Concílio de Trento ao anatematizar todos que ensinam ‘mais ou menos do que sete’ sacramentos é tanto ímpia quanto tola. O número de sacramentos que enumeramos depende da definição adotada. Se definirmos um sacramento como um ato ordenado por Deus ao qual Ele anexou a promessa do perdão dos pecados e para o qual Ele prescreveu um elemento visível, então há apenas dois sacramentos: o Batismo e a Ceia do Senhor. Omitindo o elemento visível em sua definição, a Apologia conta também a absolvição como um sacramento”.

[5] A palavra “sacramento” vem da tradução latina da Bíblia, onde a palavra grega “mistério” é traduzida como “sacramento”

[6] Catecismo Maior, Quarta Parte: Do Batismo, p. 494, [18]

[8] Lutero, no Catecismo Menor afirma que o Espírito Santo “chama, congrega, ilumina e santifica toda a cristandade na terra, e em Jesus Cristo a conserva na verdadeira e única fé” (cf. Catecismo Menor, II – O Credo, terceiro artigo: da santificação in Livro de Concórdia, 2021, p. 390, [6].

[9] Masaki, sobre a igreja, faz a seguinte afirmação: “no Novo Testamento, diz Lutero, o nome do Senhor habita em Cristo. Onde está Cristo, aí está a igreja como um corpo unido com Cristo. Onde a igreja está, ali estão a Palavra de Deus, a Ceia do Senhor e o Batismo. A confissão de Lutero é consistente com a de Inácio de Antioquia: ‘Que seja considerada uma verdadeira eucaristia aquela que é conduzida pelo bispo. Onde o bispo aparece, ali deve estar a igreja, assim como onde está Jesus Cristo, ali está a igreja católica.’ Para Lutero, a igreja é onde Cristo está e onde os meios de graça são oferecidos. Para Inácio, a igreja é onde Cristo está e onde o bispo administra a Ceia do Senhor. Em ambos os casos, a igreja é encontrada onde Cristo entrega os meios de graça por meio do Ofício do Ministério Sagrado. Em contraste com a definição da igreja a partir do homem, aqui a igreja é confessada a partir de Cristo” (Masaki, Naomichi. The Church in Luther’s Large Catechism with Annotations and Contemporany Application”.

[10] Uma liturgia eucarística encontrada na Agenda Litúrgica da SELK (Herausgegeben von der Kirchenleitung der Selbständigen Evangelisch-Lutherischen Kirche. Band 1), traz a seguinte oração de Anamnesis: “Assim lembramos, Senhor, Pai Celeste, o sofrimento e morte redentores, de teu Filho Jesus Cristo. Adoramos sua vitoriosa ressurreição dentre os mortos, e nos consolamos com sua ascensão para tua morada celeste, onde Ele é nosso Sumo Sacerdote, que sempre intercede por nós diante de ti. E assim como pela comunhão do Corpo e Sangue de teu Filho somos um só corpo em Cristo, reúne o teu povo desde os confins da Terra e permite que, junto com todos os teus fiéis, festejemos as bodas do Cordeiro em seu reino. Através dele e no Espírito Santo, seja a ti, Pai todo-poderoso, a glória, o louvor e a adoração agora e sempre, de eternidade a eternidade. Amém”.

[11] “Onipotente eterno Deus, que de acordo com teu reto juízo condenaste o mundo incrédulo pelo dilúvio e, por tua grande misericórdia, conservaste o crente Noé e mais sete pessoas de sua família; que afogaste o endurecido Faraó com todos os seus, no mar Vermelho; que conduziste o teu povo Israel através do mesmo em terra seca, prefigurando, com isso, este banho do teu santo Batismo; e que, pelo Batismo de teu querido Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, consagraste e instituíste o Jordão e todas as águas como um dilúvio bem-aventurado e uma rica lavagem dos pecados: pedimos por essa mesma [lavagem] tua profunda misericórdia, que queiras olhar graciosamente para este N. e abençoá-lo com fé verdadeira no Espírito; para que, por meio deste dilúvio salvador, tudo o que lhe é inato desde Adão e que ele mesmo a isto acrescentou seja afogado nele e desapareça; que seja separado dentre o número dos descrentes, conservado seco e seguro na santa arca da cristandade, sirva sempre a teu nome, ardendo em Espírito e alegre em esperança; para que, junto com todos os crentes, ele se torne digno de alcançar vida eterna, de acordo com a tua promessa; por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém”. Manual de Batismo Revisado in Obras Selecionadas, vol. 7. p. 218

[12] As opções 2 e 3 do Livro de Serviço Luterano (Lutheran Service Book), após a consagração dos elementos, trazem como opção a seguinte proclamação: “P Porque, todas as vezes que comerem este pão e beberem o cálice, vocês anunciam a morte do Senhor, até que ele venha. C Amém! Vem, Senhor Jesus”.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Fonte, Púlpito e Altar

 A Palavra e os sacramentos definem a unidade entre os cristãos. Em um de seus salmos, o rei Davi expressa a grande beleza dessa unidade:

“Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! É como o óleo precioso sobre a cabeça, o qual desce pela barba, a barba de Arão, e desce para a gola de suas vestes. É como o orvalho do Hermom, que desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor ordena a sua bênção e a vida para sempre” (Salmo 133).

Davi menciona Arão e Sião, não Moisés e Jerusalém, porque está falando da unidade na igreja, não na nação. Segundo Davi, a unidade é boa, prazerosa e preciosa. Onde há essa unidade, também estão presentes a bênção de Deus e a vida eterna. Reconhecendo a importância da unidade, São Paulo destaca sua relevância ao escrever aos Efésios para que façam tudo o que puderem para mantê-la: “fazendo tudo para preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Há somente um corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança para a qual vocês foram chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Efésios 4.3-6). Assim como Deus é um, há um só corpo, a igreja, um Espírito, uma fé, um batismo.

Na Igreja Luterana, procuramos expressar em nossa prática essa unidade exaltada por Davi e Paulo. No Culto Luterano, reconhecemos a unidade essencial entre a fonte do batismo, o púlpito e o altar. A fé na qual uma criança é batizada é a única fé verdadeira mencionada por Paulo aos Efésios. A fé que o pastor proclama do púlpito não é sua própria opinião, mas a única fé verdadeira expressa no credo. E a fé confessada no altar, quando recebemos a Santa Ceia, não é a fé individual de cada fiel. O perdão recebido na Santa Ceia está ligado à “fé” da igreja. Portanto, a fonte, o púlpito e o altar expressam unidade na fé. Os pastores luteranos não pregam algo diferente da fé na qual a criança é batizada. Da mesma forma, os comungantes não vêm ao altar com crenças que contradizem o que é pregado do púlpito.

Por exemplo, quando somos batizados, não somos batizados em nome de qualquer deus. Somos batizados especificamente em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A pregação do pastor orienta a fé das pessoas não para algum deus, mas especificamente para o Deus Triúno. Se o pastor não prega para guiar as pessoas a crer no Deus do nosso Batismo, não é um pregador fiel. Quando participamos da Santa Ceia, nos aproximamos do altar com aqueles que confessam fé no Deus Triúno que nos marca no Batismo e a quem o pastor aponta em sua pregação. Criar qualquer tipo de desvio entre a fonte e o altar ou entre o púlpito e o altar, permitindo variações ou discordâncias na doutrina expressa na fonte, no púlpito e no altar, é prejudicar a unidade que Davi e São Paulo pediram para manter e valorizar. Eventualmente, uma prática que não honra a unidade essencial de confissão na fonte, no púlpito e no altar destruirá a integridade confessional da igreja.


Quando falamos de Batismo, pregação e Santa Ceia, estamos, claro, falando da vida no Monte Sião. Estamos falando de como a igreja nasce, é alimentada, sustentada e preservada até o fim. E em cada atividade, Jesus é o centro. São seus benefícios que são derramados sobre nossas cabeças com a água no Batismo. Suas palavras são o foco de toda pregação. É seu perdão e vida que recebemos junto com seu Corpo e Sangue no Sacramento do Altar. É sua santa noiva com quem ele se torna um no altar.

Mas há outra forma de unidade entre a fonte, o púlpito e o altar além da unidade de confissão. O Batismo, a pregação do evangelho e a Santa Ceia nos trazem o mesmo: graça. O propósito do Batismo, do Evangelho e da Santa Ceia é o mesmo: criar e preservar a fé, a fé em Jesus, nosso Salvador. Esta fé é gerada, alimentada e nutrida por uma única coisa: a graça que vem por meio de Jesus Cristo. Assim como os israelitas foram sustentados pelo maná enviado do céu, Sião vive pela graça que Deus envia do céu em seu Filho Jesus Cristo, a graça que chega até nós no Batismo, no Evangelho e na Santa Ceia.

A graça é de valor inestimável. Sem ela, estamos longe de Deus; com ela, estamos em comunhão com Ele. Sem ela, estamos sem esperança; com ela, temos uma esperança viva e uma herança que não se perde (cf. 1Pedro 1.3-4). Sem ela, estamos perdidos para sempre; com ela, vivemos para sempre.

Infelizmente, muitas vezes as pessoas não conhecem ou não apreciam o grande valor da graça de Deus. Como resultado, costumam questionar por que precisam ser batizadas, especialmente se já acreditam em Jesus e no perdão conquistado na cruz. Essas mesmas pessoas podem questionar a necessidade de se aproximar do altar, pois já possuem o que a Santa Ceia oferece. Esse raciocínio pode parecer razoável, mas perde sentido quando examinado com mais atenção. Sim, os cristãos que chegam à fé em Cristo como adultos, por exemplo, já têm perdão completo por todos os seus pecados. Se morrerem, irão para o céu. Não podem ser “mais perdoados” do que são no momento em que creem em Cristo. Os filhos de Deus batizados e que estão na fé vivem constantemente sob a graça de Deus e não são “menos perdoados” em um sábado à noite antes da Santa Comunhão do que em um domingo depois de receber o Sacramento.

Com esse raciocínio, uma pessoa poderia decidir não se batizar nem receber a Santa Ceia nunca mais. Mas, ao adotar esse raciocínio, uma pessoa ignora a razão pela qual os Sacramentos foram dados. Eles são tesouros. São a graça de Deus. Não são obrigações impostas sobre nós, mas presentes. Não são um fardo para a fé, mas a alimentam. Quem, em sã consciência e em circunstâncias normais, rejeitaria o alimento necessário para sustentar sua vida? A graça é o alimento que nutre nossa fé e a sustenta. Por que deveríamos rejeitá-la? As pessoas que não querem ser batizadas ou são negligentes em participar da Santa Ceia não acreditam no que a Bíblia diz sobre o presente de Deus nesses sacramentos.

Imagine que eu tenha um campo cheio de tesouros e permita que você ande por ele. Que eu lhe dê uma bolsa e peça que guarde tudo o que encontrar. Logo, você encontra vários diamantes e coloca na bolsa. Alguns metros adiante, descobre um monte de grandes rubis. Você os deixará lá porque já tem diamantes? A maioria de nós adoraria ter diamantes e rubis, então você adiciona os rubis à bolsa e continua. Agora, você encontra algumas esmeraldas. O que fará? Diamantes, rubis e esmeraldas são todas joias preciosas. Você não vai desprezar uma só porque não parece com as outras. O valor vem de diferentes formas. O que pensaria de alguém que diz: “Minha irmã herdou um milhão de dólares em ouro, mas eu herdei um milhão de dólares em prata. Estou muito descontente.” ? Assim como pedras preciosas, prata e ouro são diferentes, mas todas são valiosas, Deus também tem mais de uma forma de mostrar e nos dar seu amor: o Evangelho, o Batismo e a Santa Ceia. Seu amor e graça não têm menos valor por virem de diferentes meios. Pelo contrário, Deus usa os três meios de graça para garantir que nos ama.

Na proclamação do evangelho, não há dúvida sobre quem Deus deseja perdoar e salvar. A Bíblia diz: “O Senhor... é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pedro 3.9). Em sua primeira carta a Timóteo, Paulo diz que Deus “deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Timóteo 2.4). Jesus disse: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). E Paulo proclama que Cristo “morreu por todos” (2Coríntios 5.15). O Evangelho esclarece que Deus ama a todos; Deus enviou seu Filho para todos; Jesus morreu por todos. Portanto, podemos confiar que Jesus é nosso Salvador. No entanto, devido ao pecado, podemos duvidar desse fato, por isso Deus manifesta seu amor e perdão de outra maneira. Ele derrama água sobre nossa cabeça e somos batizados em seu nome. Da mesma forma, Deus estabelece claramente em sua Santa Ceia que sua graça é plenamente destinada a cada pessoa junto ao altar. Não podemos ter dúvidas de que o perdão de Deus é para nós quando o corpo do Salvador é colocado em nossa boca. Não podemos duvidar que Jesus nos salvou quando nos dá para beber seu próprio Sangue derramado por nós na cruz.

O amor de Deus nos fala de diferentes maneiras, mas é o mesmo amor, seja através do Evangelho, do Batismo ou da Santa Ceia. Seu perdão, salvação e vida são transmitidos de formas diferentes, mas são o mesmo perdão, vida e salvação que Cristo conquistou no Monte Calvário e que nos é dado no Monte Sião. Esses tesouros de Deus criam, nutrem e preservam Sião durante a peregrinação na terra e a preparam para o dia em que se encontrará com o Salvador face a face, e a graça culminará em glória eterna.

- Capítulo traduzido e adaptado de Why I am a Lutheran. Jesus at the Center, escrito pelo Rev. Daniel Preus e publicado pela Concordia Publishing House, 2004. Todas as citações da Bíblia Sagrada são da versão Nova Almeida Atualizada (NAA), da Sociedade Bíblica do Brasil.