O
que é um meio de graça?
A
teologia luterana não aborda a questão dos sacramentos, ou meios da graça,
partindo de uma definição geral ou de um conceito universal. A essência dos
sacramentos não pode ser captada se forem vistos apenas como fenômenos
religiosos ou rituais que também aparecem em outras religiões. Embora outras
religiões possam ter práticas semelhantes ao batismo e à Ceia do Senhor, como o
uso da água e refeições cultuais, não existe uma ideia universal compartilhada
por trás dessas práticas. Os sacramentos cristãos são sui generis, sem
comparação possível, pois foram instituídos exclusivamente pelo Filho de Deus.
Ao
contrário da Igreja Católica Romana e da tradição reformada, a Igreja da Confissão de
Augsburgo não desenvolve sua doutrina sacramental a partir de uma definição
geral. A Confissão de Augsburgo aborda os sacramentos de maneira particular,
tratando cada um deles individualmente. A doutrina dos sacramentos, portanto,
não é deduzida de um conceito a priori, mas busca uma síntese através da
observação indutiva. Isso é mais evidente no fato de que os luteranos nunca
definiram com precisão o número de sacramentos. A Igreja de Roma ensina que há
exatamente sete sacramentos, enquanto Genebra reconhece apenas dois. No
luteranismo, o número de sacramentos pode variar (de 2 a 4), dependendo de como
definimos o que é um sacramento. Isso se deve simplesmente
ao fato de que Cristo não instituiu um sacramento abstrato, mas instituiu a
Ceia do Senhor, o Batismo, a Confissão, e o Ofício Pastoral para ministrá-los e
proclamar o Evangelho. É importante lembrar que o termo “sacramento” não
aparece no Novo Testamento com seu significado teológico. Por isso, a ordem dos
artigos na Confissão de Augsburgo revela a maneira correta do luteranismo
abordar essa questão: Artigo V: do ministério da pregação; Artigo IX: do
Batismo; Artigo X: da Ceia do Senhor; Artigo XI: da Confissão de Pecados; e Artigo XIII: do uso
dos Sacramentos. Só no Artigo XIII é que se diz algo geral e comum sobre todos
os sacramentos tratados anteriormente, mas mesmo assim não é dada uma definição
abrangente ou limitante. Esse ensino, de acordo com o princípio do sola
scriptura, impede que apliquemos categorias humanas aos sacramentos,
forçando-os a se encaixar em um “molde sacramental”. Isso não significa que não
sejam necessárias algumas definições delimitadoras e esclarecedoras. Lutero
cita uma frase do pai da Igreja, Agostinho, no Catecismo Maior, tanto no
contexto do Batismo quanto na Ceia do Senhor: “Accedat verbum ad elementum
et fit sacramentum: o que significa: ‘Quando a palavra se junta ao elemento
ou substância natural, faz-se o sacramento’”. No entanto, nossos documentos
confessionais não excluem, com base nessa fórmula, a Confissão, mesmo que não
envolva um elemento físico, nem negam a natureza sacramental do Ofício
Pastoral. Na Apologia (art. XIII) lemos:
“Autenticamente
sacramentos são, portanto, o batismo, a ceia do Senhor e a absolvição, que é o
sacramento da penitência. Pois esses ritos têm o mandamento de Deus e a
promessa da graça, que é própria do Novo Testamento. [...] Os sacerdotes não
são chamados para realizar algum sacrifício pelo povo como era na lei, visando
merecer o perdão dos pecados para o povo por meio dele, mas são chamados para
ensinar o evangelho e administrar os sacramentos ao povo. [...] Se a ordem for
entendida como referente ao ministério da palavra, não relutaremos em chamar a
ordem de sacramento. Pois o ministério da Palavra tem mandamento divino e magníficas
promessas. [...] Se a ordem for entendida dessa maneira, não nos recusaremos a
chamar de sacramento nem a imposição de mãos. Pois a igreja tem o mandamento de
constituir ministros, pelo qual devemos ser profundamente gratos, porque sabemos
que Deus aprova esse ministério e nele está presente” (Ap, Art. XIII, p. 250-251).
Nós
encontramos na Bíblia a instituição de Cristo para cada sacramento.
“Portanto, vão e façam discípulos... batizando-os...
ensinando-os” (Mt 28.19-20). “Façam isto em memória
de mim” (Lc 22.19; 1Co 11.24). “Recebam o Espírito Santo. Se de alguns
vocês perdoarem os pecados, são-lhes perdoados; mas, se os retiverem, são
retidos” (Jo 20.22-23). É notável que essas passagens, que servem de base
doutrinária para os sacramentos, também fundamentam a ordenação ao ministério e
o envio (missio). Sacramentos e o ofício pastoral não podem e não devem
ser separados. Observamos também que, embora a Bíblia atribua várias promessas
ao casamento, à doação de esmolas e à oração, esses atos não cumprem os
requisitos para serem considerados sacramentos: “Sinais e testemunhos da
vontade de Deus para conosco, mediante os quais Deus leva os corações a crerem”
(Ap. Art. XIII, p.249). A oração é um
ato sacrificial, uma ação que parte do ser humano em direção a Deus, enquanto
os sacramentos, por outro lado, são ações graciosas e salvadoras de Deus para
conosco. Por isso, o convite luterano ao altar é sempre para a mesa da Ceia do
Senhor, onde recebemos objetivamente os dons da graça de Deus, contrastando com
a tradição evangélica, onde o chamado ao altar é uma resposta sinergística, uma
decisão pessoal ou uma oração oferecida a Deus. Também não devemos, de forma
alguma, confundir dons espirituais com meios de graça, pois Cristo não
instituiu os chamados dons espirituais para a Igreja em um sentido restrito,
nem vinculou a eles qualquer promessa de transmissão da graça. Há uma diferença
tão grande entre os meios de graça e os dons espirituais quanto entre o doador
do presente e os presentes.
Ao
compreendermos a singularidade de cada sacramento, iremos desfrutar
corretamente de todos os dons de Deus que Cristo concedeu à Igreja. Ele deu
muitos dons porque sabe que precisamos de cada um deles. Não podemos colocá-los
em oposição uns aos outros ou classificá-los por importância. Considero
problemático se cada sacramento for visto apenas como uma forma específica da
palavra (por exemplo, ao se falar da palavra como sacramento básico). Isso
corre o risco de nivelar e empobrecer os tesouros concedidos à Igreja.
Portanto, mesmo que falemos de termos como “sacramento audível” (sacramentum
audibile) e “palavra visível” (verbum visibile), eles não devem nos
enganar. É verdade que não há nada de especial nos elementos que são abençoados
em si mesmos. Por isso, é precisamente a palavra, quando unida à água, ao pão e
ao vinho, bem como às ondas sonoras, que os torna sacramentos e nos concede o
mesmo dom de perdão dos pecados, gerando e fortalecendo a fé. No entanto, não
devemos igualá-los completamente. O Batismo é o sacramento da porta, e não é
repetido, enquanto a Ceia do Senhor deve ser recebida semanalmente como
alimento para a vida e caminha do cristão na terra. A confissão concede o
perdão dos pecados, mas não o Corpo e o Sangue de Cristo. O que dizemos sobre o
Batismo, portanto, não se aplica necessariamente à Ceia do Senhor. Assim, por
exemplo, aceitamos o Batismo dos reformados como válido, mas não consideramos
sua Ceia do Senhor como válida. Da mesma forma, por exemplo, a absolvição pode
ser dada por um leigo, mas não reconhecemos o conceito de uma “Ceia do
Senhor de emergência”. Para nós, ouvir apenas a pregação não é suficiente;
também precisamos da Ceia do Senhor semanalmente. Portanto, o melhor é
desfrutar e admirar a particularidade de cada meio de graça e receber graça
sobre graça.
Cristologia
e Meios da Graça
Na
exposição da teologia luterana, a cristologia, a pessoa e a obra de Cristo
precedem a doutrina dos meios de graça. Isso não é apenas uma questão de método
expositivo, mas contém um profundo significado teológico. Os meios de graça
recebem seu significado do fato de que “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14) A
segunda pessoa do Deus eterno, imutável e invisível assumiu a natureza humana
no ventre da Virgem Maria. O Espírito de Deus entra na matéria, o Criador no
criado, e o Invisível se torna visível. A maneira como Deus realiza a história
da salvação é sempre teologia da cruz, ou seja, o poder oculto na
fraqueza, a glória na insignificância, o Espírito na matéria, a fé em vez da
experiência, e a direção é sempre de cima para baixo. O princípio do
conhecimento de Deus no luteranismo é: Deus absconditus é Deus revelatus
somente e unicamente naquele que é Deus incarnatus. Portanto, não temos
nenhum conhecimento direto do Deus Triúno, nem acesso ao Deus oculto, exceto em
Cristo encarnado. Ao confessar isso, afirmamos que Deus não deseja se
relacionar com as pessoas de outra maneira que não seja por meio dos meios da
graça. A encarnação é um juízo contra todo misticismo que busca se aproximar do
Deus nu, sem intermediários. Esse modelo encarnacional continua também nos
meios de graça dentro da congregação.
A
vida de Cristo, seu sofrimento vicário e morte na cruz, bem como sua
ressurreição, foram, de fato, a absolvição de todo o mundo. Embora o pecado
ainda atue no mundo, o coração de Deus agora é gracioso. Essa disposição
graciosa de Deus significa justificação universal. A reconciliação foi
realizada por Deus de uma vez por todas, mas agora ele deseja compartilhar seus
frutos, para que ninguém fique sem eles. Por isso, ele instituiu os meios pelos
quais nos oferece e concede essa graça. Por isso, no luteranismo chamamos os
sacramentos de meios de graça, media salutis, porque eles nos transmitem
Cristo e seus dons. Os sacramentos não criam uma nova graça, mas nos distribuem
a graça já existente. Os sacramentos não são nossos sacrifícios ou promessas de
aliança a Deus. Eles não são uma extensão do Decálogo para nós. Não são lei,
mas evangelho. Embora o imperativo divino nos obrigue a seguir, por exemplo, o
mandamento do batismo e a ordem do Senhor, eles não são exigências da lei para
nós. Pois a obediência à lei é completamente diferente de seguir a ordenança
graciosa de Cristo, pela qual Ele prometeu nos dar seus dons. Pois, embora não
possamos cumprir a lei, temos o evangelho como segurança. Mas, se desprezamos o
evangelho e os meios pelos quais ele é trazido a nós, tal como Cristo mesmo os
instituiu, resta apenas a condenação. Lutero explica de maneira precisa a
relação entre a obra da cruz e a distribuição de seus frutos. Ele responde
onde, então, estamos verdadeiramente “aos pés da cruz”:
“Tratamos
do perdão dos pecados de duas maneiras. Primeiro, como ele é conquistado e
alcançado. Segundo, como é distribuído e dado a nós. Cristo o conquistou na
cruz, é verdade. Mas ele não o distribuiu ou deu na cruz. [...] Ele o
conquistou de uma vez por todas na cruz. Mas a distribuição ocorre
continuamente, antes e depois, do começo ao fim do mundo. [...] Se agora eu
procuro o perdão dos pecados, [...] o encontrarei no sacramento ou no
evangelho, a palavra que distribui, apresenta, oferece e me dá aquele perdão
que foi conquistado na cruz” (Contra os Profetas
Celestiais, LW, 40, 213.)
Cristo
instituiu os sacramentos para que, neles e por meio deles Cristo possa atuar
neste mundo. Sua promessa de estar conosco todos os dias até o fim do mundo (cf.
Mt 28.20) não é uma presença vaga, mas temos Cristo, que conhecemos, cheiramos,
provamos e cuja voz ouvimos. Quando falamos dos sacramentos, estamos sempre
falando de Cristo. Neles, Cristo está realmente presente. Por isso, o slogan
luterano é EST! Cristo está realmente presente nos meios de graça tanto
em sua natureza divina quanto humana. Os Santos Sacramentos são a ação
monergística de Deus por meio de seu ministro da Palavra. Cristo batiza, Cristo
distribui seu Corpo e Sangue, Cristo proclama o perdão dos pecados. Os
sacramentos são, portanto, a própria ação graciosa de Deus.
Os
sacramentos têm uma base objetiva, pois são a ação de Deus por meio de um
instrumento humano. Recebemos e possuímos pela fé o dom de Cristo e o perdão
dos pecados nos meios da graça. Fé e sacramentos andam unidos. Não de modo que
a origem e a manutenção da fé estejam separadas deles, mas sim que, por meio
dos sacramentos, a fé é gerada. Pois os meios da graça são sinais da graça de
Deus, que não apontam para algo fora de si mesmos, mas oferecem e concedem o
que prometem. Eles têm o poder de gerar fé, que por sua vez se apega a Cristo e
o possui nos sacramentos. Assim, a justificação pela fé está ligada à
justificação universal, embora entre elas deva ser mantida a distinção entre
causa e efeito. A graça, afinal, sempre precede a fé.
Pneumatologia
e Meios da Graça
Ao
longo da história da Igreja, um dos grandes problemas associados ao movimento
do “entusiasmo” ou “espiritualismo” tem sido a separação entre Cristo e o
Espírito Santo. É importante lembrar o axioma: ubi Spiritus Sanctus ibi
Christus, ubi Christus ibi Spiritus Sanctus (“onde está o Espírito Santo,
ali está Cristo; onde está Cristo, ali está o Espírito Santo”). Devemos ter em mente que
aquele que foi concebido pelo Espírito Santo e sobre quem a pomba desceu,
também enviou o Espírito Santo à Igreja. Esses eventos que indicam o envio
temporal do Espírito refletem a eterna origem do Espírito a partir do Pai e do
Filho (filioque). O Espírito Santo é o Espírito de Cristo. Portanto, os
meios da graça são também instrumentos do Espírito Santo. O Espírito não vem
até nós como uma pomba ou como línguas de fogo, mas através dos meios que
Cristo estabeleceu.
Ainda
hoje, enfrentamos o legado do dualismo platônico de mil anos, que separa
espírito e matéria. É difícil para nós, de forma racional, entender como o
Espírito pode estar presente em substâncias físicas, como água ou pão e vinho.
Por isso, devemos constantemente revisar a “Theologia Crucis” (Teologia
da Cruz). Deus não vem até nós diretamente em sua majestade nua, mas se oculta
aos nossos olhos. O Batismo, a Ceia, a pregação do evangelho e a Confissão são
os meios através dos quais o evangelho é trazido de forma material para seres
materiais. Isso também tem uma profunda dimensão antropológica, pois não somos
apenas seres espirituais, mas temos corpo e alma. Portanto, Deus teve que se
tornar carne para que pudéssemos encontrá-lo. Da mesma forma, o Espírito Santo
opera através da matéria no meio de seres materiais.
A
tarefa do Espírito Santo é chamar e reunir a Igreja, que é o povo de Deus, o
corpo de Cristo e o templo do Espírito Santo (cf. 1Co 6.19). É através dos
meios da graça que a Igreja é formada e preservada. A Confissão de Augsburgo (art.
VII) afirma que a verdadeira Igreja, Una Sancta, está onde o evangelho é
pregado corretamente e os sacramentos são administrados corretamente. A
eclesiologia luterana é, portanto, encarnacional, ou seja, sacramental,
diferenciando-se do modelo católico externo e hierárquico e do modelo reformado
interno e espiritualista.
Escatologia
e Meios da Graça
Os
meios da graça sempre contêm um elemento escatológico. Eles não estão limitados
por restrições de tempo e lugar. Eles nos conectam tanto ao Calvário quanto ao
juízo final. Os sacramentos estão ligados à lembrança da história da salvação,
a anamnesis
(por exemplo, a oração de batismo de Lutero menciona o dilúvio, a travessia do
Mar Vermelho, o batismo de Jesus no Jordão, ou as palavras da
liturgia da ceia: “Na noite em que foi traído”). Os sacramentos apontam para o
passado, mas também olham para o futuro, para o juízo final e o banquete
nupcial do Cordeiro. No batismo, já ascendemos para uma nova vida; a absolvição
que recebemos é um prelúdio da declaração de liberdade no juízo final; e na
mesa da ceia, participamos agora da refeição messiânica. Assim, a teologia
sacramental mantém uma compreensão bíblica dos últimos tempos, evitando
especulações sobre arrebatamentos e reinos milenaristas. Também entendemos que
o anúncio de Jesus sobre a iminente chegada do reino de Deus não foi um
desastre, apesar de já ter passado dois mil anos. As orações “Maranatha”
na liturgia da Ceia nos lembram que Cristo
veio e continua a vir para o meio de sua Igreja. Ele nunca nos abandonou!
Vivemos agora – não ainda a vida celestial – através dos Sacramentos. Ainda
pela fé, mas em breve também pela visão.
A
teologia sacramental nunca deve se restringir às “salas de aula” ou se tornar
uma “teologia acadêmica”. Os sacramentos não pertencem propriamente à academia,
mas aos espaços sagrados da Igreja. Nunca entenderemos os sacramentos
corretamente se não passarmos semanalmente pela porta da igreja, ao lado da pia
batismal, ouvirmos a Palavra de Deus no púlpito e nos colocarmos ao redor do
altar para receber o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo. Ali, o Cristo
encarnado, com todos os anjos e arcanjo e a companha celestial, está presente
conosco. Portanto, a correta teologia ortodoxa surge de um ensino correto, a orto
didaskalia, à verdadeira adoração, orto doxía. À medida que
começamos a entender que Cristo está realmente presente através dos
sacramentos, descobrimos as riquezas da liturgia antiga, a verdadeira piedade,
a alegria na e da adoração.