Recentemente, recebi uma pergunta no Instagram que é uma excelente oportunidade para explicar um ponto-chave da doutrina luterana sobre a Santa Ceia:
“O que difere a União Sacramental da Consubstanciação?”
Essa dúvida é legítima e compreensível, especialmente porque, fora dos círculos luteranos confessionais, muita gente ainda associa os luteranos à ideia de “consubstanciação”. Mas essa associação é incorreta e, na verdade, rejeitada pela própria teologia luterana confessional.
A palavra consubstanciação não foi criada por Lutero nem aprovada pelas Confissões Luteranas. Na verdade, foi um rótulo imposto por críticos da Reforma. Como explica Stephenson (2003, p. 109),
“a plena aceitação do paradoxo nas palavras eucarísticas por parte do Reformador foi logo parodiada pelo termo ‘consubstanciação’. Os luteranos ortodoxos nunca puderam aceitar com entusiasmo esse rótulo como sinônimo da união sacramental, uma vez que se baseia na categoria não-bíblica de ‘substância’”.
A consubstanciação, especialmente como entendida por alguns teólogos escolásticos, sugere que o pão e o corpo de Cristo se fundem numa única massa física, assim como o vinho e o sangue de Cristo. John Gerhard, citado por Stephenson (2003, p. 110), define:
“Consubstanciação, pela qual o pão se funde com o corpo de Cristo e o vinho com Seu sangue numa única massa física”.
Mas a teologia luterana evita esse tipo de explicação filosófica porque a presença de Cristo na Ceia é um mistério sacramental instituído pela Palavra, não algo que pode ser explicado por categorias naturais ou filosóficas.
A teologia luterana confessional, por outro lado, fala em União Sacramental (unio sacramentalis). Essa é a linguagem dos nossos símbolos de fé, especialmente na Fórmula de Concórdia. A União Sacramental reconhece que Cristo está realmente presente com seu corpo e sangue no pão e no vinho, de maneira verdadeira, real e substancial — mas não física ou local, como se ele estivesse “misturado” ao pão. Franz Pieper afirma com clareza:
“A união da materia coelestis com a materia terrena não é uma união natural ou local, mas uma união sobrenatural (non localis inclusio, impanatio, consubstantiatio)” (PIEPER, 1953, v.3, p. 344).
Isso significa que o corpo de Cristo é recebido na Ceia de maneira sobrenatural, instituída pela Palavra de Cristo, e não como resultado de uma fusão material entre as substâncias. Como diz Pieper,
“as Escrituras ensinam uma união (unio) entre o elemento terreno e o elemento celestial” (PIEPER, 1953, v.3, p. 342).
Essa união sacramental é a base da afirmação de fé luterana de que, quando comemos o pão da Ceia, recebemos também o verdadeiro corpo de Cristo; e quando bebemos o vinho, recebemos o verdadeiro sangue de Cristo. Não há transformação das substâncias (como no romanismo), nem há presença simbólica (como no calvinismo ou zwinglianismo), mas há uma união real e verdadeira — sacramental.
Essa doutrina não apenas é teologicamente sólida, mas profundamente bíblica e confessional. No Catecismo Menor, Lutero ensina:
“É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, sob o pão e o vinho, dado a nós cristãos para comer e beber, instituído pelo próprio Cristo” (Livro de Concórdia, Catecismo Menor, VI, 1).
E ainda:
“A santa ceia é pão e vinho, mas não simples pão e vinho... é e se chama corpo e sangue de Cristo” (idem, VI, 9-10).
A Confissão de Augsburgo, em seu artigo X, também afirma de modo claro:
“Do Sacramento do Altar se ensina que o verdadeiro corpo e sangue de Cristo estão realmente presentes sob as espécies de pão e vinho, e que ali são distribuídos e recebidos. Rejeita-se, pois, a doutrina contrária” (Livro de Concórdia, Confissão de Augsburgo, Art. X).
Já a Fórmula de Concórdia, documento que trata de forma detalhada as controvérsias pós-Reforma, declara:
“Cremos, ensinamos e confessamos que, na santa ceia, o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes e são verdadeiramente distribuídos e recebidos com o pão e o vinho” (Declaração Sólida, VII, 6-7).
A doutrina da União Sacramental também preserva a linguagem bíblica e evita mal-entendidos. Por exemplo, os luteranos foram injustamente acusados de crer em uma “presença carnal e grosseira” (uma ideia capernaitica, como se Cristo fosse mastigado com os dentes). Mas como esclarece Stephenson (2003, p. 109),
“com a palavra ‘espiritual’ rejeitamos a noção capernaitica de uma presença grosseira e carnal, que os sacramentarianos atribuem falsamente às nossas igrejas”.
Em resumo, a doutrina luterana sobre a Ceia do Senhor é marcada por reverência e fidelidade às palavras de Cristo, sem se aventurar em especulações filosóficas. A Santa Ceia é, antes de tudo, dom, não teoria. Nela, recebemos de forma verdadeira e salvadora o próprio Cristo, com seu corpo entregue e sangue derramado por nós para o perdão dos pecados.
A diferença entre União Sacramental e Consubstanciação é, portanto, essencialmente uma diferença entre confessar e explicar. E como igreja que vive da Palavra, preferimos confessar o que Cristo disse — e descansar em Sua promessa.
Por isso, é importante dizer com toda clareza: a Igreja Luterana não ensina nem adota a doutrina da consubstanciação. Essa ideia foi atribuída aos luteranos de forma equivocada, e historicamente rejeitada por nossos teólogos e confissões.
A doutrina bíblica ensinada pela Igreja Luterana — e fielmente confessada nos escritos do Livro de Concórdia — é a da União Sacramental (unio sacramentalis). Nela, reconhecemos que, por força da Palavra de Cristo, o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Jesus estão unidos ao pão e ao vinho no Sacramento do Altar. Essa é a nossa confissão: simples, profunda e cheia de consolo.
Rev. Filipe Schuambach Lopes
Referências:
PIEPER, Franz. Christian Dogmatics. Volume 3. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1953.
STEPHENSON, John R. The Lord’s Supper. Confessional Lutheran Dogmatics, vol. XII. St. Louis: Luther Academy, 2003.
LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução de Arnaldo Schüler. Edição revisada por Yedo Brandenburg. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2021.
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