Uma das dúvidas mais frequentes que surgem quando alguém começa a conhecer a doutrina luterana é esta: qual é a diferença entre o que os luteranos ensinam sobre a Santa Ceia e o que a Igreja Católica Romana ensina? Afinal, tanto os luteranos quanto os católicos creem na presença real de Cristo no Sacramento. Isso significa que ambos confessam que, de alguma forma, o verdadeiro corpo e sangue de Jesus estão presentes na Ceia do Senhor. Mas embora compartilhem essa afirmação, há uma diferença profunda no modo como essa presença é compreendida e confessada. Essa diferença se expressa principalmente em dois termos: Transubstanciação, que é a doutrina da Igreja Católica Romana, e União Sacramental, que é a doutrina da Igreja Luterana.
A transubstanciação foi oficialmente definida como dogma no Concílio de Latrão IV, no ano de 1215, e reafirmada pelo Concílio de Trento no século XVI. De acordo com essa doutrina, no momento da consagração durante a Missa, ocorre uma mudança completa da substância do pão e do vinho na substância do corpo e sangue de Cristo. Ou seja, após a consagração, não haveria mais pão e vinho — o que restaria seriam apenas as aparências externas, como o sabor, a cor, o formato. A substância interna teria sido completamente transformada. Essa doutrina foi construída com base na filosofia de Aristóteles, que fazia uma distinção entre “substância” e “acidentes” (as qualidades visíveis de uma coisa). A intenção era boa: proteger a confissão da presença real. No entanto, com o tempo, essa explicação gerou uma série de problemas práticos e teológicos.
O teólogo luterano Arthur A. Just Jr. observa que, por causa dessa crença na transubstanciação, desenvolveu-se uma preocupação exagerada com o que poderia acontecer com o pão e o vinho depois da consagração. Ele diz que, devido à ideia de que o pão e o vinho deixam de existir, passou-se a tomar um cuidado extremo para que nenhuma migalha do pão consagrado caísse no chão, e que nenhuma gota do vinho fosse derramada. O problema, segundo Just, é que essa prática acabou levando a algo mais sério: a retirada do cálice dos leigos. Por receio de que o sangue de Cristo pudesse ser derramado, o povo passou a receber apenas a hóstia, e o cálice ficou restrito ao clero. Como consequência, surgiu a chamada “comunhão com os olhos” — ou seja, as pessoas participavam da Ceia apenas observando a hóstia sendo erguida pelo padre, sem comer nem beber, confiando que só de olhar já estavam se beneficiando do sacramento. Como resume Just:
“Essa doutrina era uma tentativa de conservar a presença real, mas se tornou um meio de retirar a copa dos leigos. [...] Essa comunhão com os olhos se tornou a maneira mais comum de receber a Santa Ceia” (Just, p. 216).
Esse é um exemplo de como uma doutrina bem-intencionada, quando vai além das Escrituras e tenta explicar racionalmente um mistério divino, pode acabar levando a práticas não apenas equivocadas, mas até mesmo contrárias ao que Cristo instituiu. Jesus não disse: “olhem para este pão e este cálice”, mas sim: “Tomai e comei... Tomai e bebei”.
A teologia luterana vai por outro caminho. Ela parte do princípio de que a Palavra de Cristo é suficiente. Quando Jesus disse: “Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue”, ele não deixou espaço para simbolismos ou explicações filosóficas. A doutrina luterana da União Sacramental é uma confissão do mistério da presença real, sem tentar explicar como isso acontece, mas simplesmente crendo que, quando a Palavra de Cristo está presente, ele está presente de forma verdadeira, real e substancial com o pão e o vinho.
Segundo o Livro de Concórdia, documento que reúne as confissões da fé luterana,
“o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes, e são verdadeiramente distribuídos e recebidos com o pão e o vinho” (Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, VII, 6-7).
Isso quer dizer que, ao mesmo tempo que recebemos pão e vinho, também recebemos, com eles, o verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Não há transformação de substância. O pão continua sendo pão. O vinho continua sendo vinho. Mas unidos, de forma misteriosa e sacramental, ao corpo e sangue do Salvador. Essa união é realizada pela própria Palavra de Cristo, não por fórmulas humanas.
Por isso, os luteranos rejeitam claramente a doutrina da transubstanciação. Ainda no Livro de Concórdia, lemos:
“Rejeitamos e condenamos a transubstanciação papista, quando se ensina que o pão e o vinho consagrados [...] perdem totalmente sua substância e essência e são transformados na substância do corpo e sangue de Cristo, de maneira que apenas resta a forma do pão e do vinho” (Fórmula de Concórdia, VII, 14, p. 483).
E mais adiante:
“Usamos as expressões ‘sob o pão’, ‘com o pão’, ‘no pão’ para que, com isso, se rejeite a transubstanciação papista e se indique a união sacramental entre a essência não transformada do pão e o corpo de Cristo.” (Idem, p. 476).
Até mesmo os primeiros cristãos, como Irineu, já falavam dessa união entre o pão e o corpo de Cristo, mas, como os reformadores disseram, isso não significa uma transformação essencial, como mais tarde ensinaria Roma (Idem, p. 471).
O teólogo John Stephenson escreve que os luteranos reconhecem que, após a consagração, o pão já não é um pão comum, mas o pão eucarístico — “a Eucaristia do corpo de Cristo” — composto de duas realidades: o terreno (pão e vinho) e o celestial (corpo e sangue). Porém, diz ele, “negamos que disso se deva concluir a transubstanciação como ensinam os papistas” (Stephenson, p. 110). Ou seja, há uma mudança sim — mas não uma mudança de substância. É uma mudança sacramental, não natural.
Franz Pieper, grande dogmático luterano, explica que essa união é sobrenatural, e não deve ser confundida com uma fusão ou substituição. Ele escreve:
“As Escrituras ensinam uma união entre o elemento terreno e o celestial: o corpo de Cristo é recebido com o pão, e o sangue com o vinho” (Christian Dogmatics, v.3, p. 342).
E ele continua:
“O pão permanece pão, o vinho permanece vinho, mas unidos, de forma sobrenatural, ao corpo e ao sangue de Cristo” (Idem, p. 344).
Portanto, a diferença entre a doutrina da transubstanciação e a união sacramental não está no fato de uma crer e a outra não crer na presença real — ambas creem. A diferença está em como essa presença é compreendida e confessada. A transubstanciação tenta explicar o mistério, usando categorias humanas e filosóficas. A união sacramental, por outro lado, confessa o mistério com base na Palavra de Deus, sem ir além do que Cristo disse.
A Igreja Luterana permanece firme na sua confissão: na Santa Ceia, Cristo está presente com seu corpo e sangue de forma verdadeira, real e salvadora. Ele não está presente porque tentamos entender ou explicar, mas porque ele prometeu. E se ele prometeu, nós cremos, adoramos e recebemos com fé e gratidão.
No altar, o pão e o vinho continuam sendo pão e vinho — mas, unidos à Palavra, são também o corpo e o sangue de Cristo. É o Evangelho visível. É Cristo vindo a nós com seu perdão, sua vida, sua salvação.
E isso basta.
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