quinta-feira, 27 de março de 2025

O que difere a União Sacramental da Transubstanciação?


Uma das dúvidas mais frequentes que surgem quando alguém começa a conhecer a doutrina luterana é esta: qual é a diferença entre o que os luteranos ensinam sobre a Santa Ceia e o que a Igreja Católica Romana ensina? Afinal, tanto os luteranos quanto os católicos creem na presença real de Cristo no Sacramento. Isso significa que ambos confessam que, de alguma forma, o verdadeiro corpo e sangue de Jesus estão presentes na Ceia do Senhor. Mas embora compartilhem essa afirmação, há uma diferença profunda no modo como essa presença é compreendida e confessada. Essa diferença se expressa principalmente em dois termos: Transubstanciação, que é a doutrina da Igreja Católica Romana, e União Sacramental, que é a doutrina da Igreja Luterana.

A transubstanciação foi oficialmente definida como dogma no Concílio de Latrão IV, no ano de 1215, e reafirmada pelo Concílio de Trento no século XVI. De acordo com essa doutrina, no momento da consagração durante a Missa, ocorre uma mudança completa da substância do pão e do vinho na substância do corpo e sangue de Cristo. Ou seja, após a consagração, não haveria mais pão e vinho — o que restaria seriam apenas as aparências externas, como o sabor, a cor, o formato. A substância interna teria sido completamente transformada. Essa doutrina foi construída com base na filosofia de Aristóteles, que fazia uma distinção entre “substância” e “acidentes” (as qualidades visíveis de uma coisa). A intenção era boa: proteger a confissão da presença real. No entanto, com o tempo, essa explicação gerou uma série de problemas práticos e teológicos.

O teólogo luterano Arthur A. Just Jr. observa que, por causa dessa crença na transubstanciação, desenvolveu-se uma preocupação exagerada com o que poderia acontecer com o pão e o vinho depois da consagração. Ele diz que, devido à ideia de que o pão e o vinho deixam de existir, passou-se a tomar um cuidado extremo para que nenhuma migalha do pão consagrado caísse no chão, e que nenhuma gota do vinho fosse derramada. O problema, segundo Just, é que essa prática acabou levando a algo mais sério: a retirada do cálice dos leigos. Por receio de que o sangue de Cristo pudesse ser derramado, o povo passou a receber apenas a hóstia, e o cálice ficou restrito ao clero. Como consequência, surgiu a chamada “comunhão com os olhos” — ou seja, as pessoas participavam da Ceia apenas observando a hóstia sendo erguida pelo padre, sem comer nem beber, confiando que só de olhar já estavam se beneficiando do sacramento. Como resume Just: 
“Essa doutrina era uma tentativa de conservar a presença real, mas se tornou um meio de retirar a copa dos leigos. [...] Essa comunhão com os olhos se tornou a maneira mais comum de receber a Santa Ceia” (Just, p. 216).
Esse é um exemplo de como uma doutrina bem-intencionada, quando vai além das Escrituras e tenta explicar racionalmente um mistério divino, pode acabar levando a práticas não apenas equivocadas, mas até mesmo contrárias ao que Cristo instituiu. Jesus não disse: “olhem para este pão e este cálice”, mas sim: “Tomai e comei... Tomai e bebei”.

A teologia luterana vai por outro caminho. Ela parte do princípio de que a Palavra de Cristo é suficiente. Quando Jesus disse: “Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue”, ele não deixou espaço para simbolismos ou explicações filosóficas. A doutrina luterana da União Sacramental é uma confissão do mistério da presença real, sem tentar explicar como isso acontece, mas simplesmente crendo que, quando a Palavra de Cristo está presente, ele está presente de forma verdadeira, real e substancial com o pão e o vinho.

Segundo o Livro de Concórdia, documento que reúne as confissões da fé luterana, 
“o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes, e são verdadeiramente distribuídos e recebidos com o pão e o vinho” (Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida, VII, 6-7).
Isso quer dizer que, ao mesmo tempo que recebemos pão e vinho, também recebemos, com eles, o verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Não há transformação de substância. O pão continua sendo pão. O vinho continua sendo vinho. Mas unidos, de forma misteriosa e sacramental, ao corpo e sangue do Salvador. Essa união é realizada pela própria Palavra de Cristo, não por fórmulas humanas.

Por isso, os luteranos rejeitam claramente a doutrina da transubstanciação. Ainda no Livro de Concórdia, lemos: 
“Rejeitamos e condenamos a transubstanciação papista, quando se ensina que o pão e o vinho consagrados [...] perdem totalmente sua substância e essência e são transformados na substância do corpo e sangue de Cristo, de maneira que apenas resta a forma do pão e do vinho” (Fórmula de Concórdia, VII, 14, p. 483). 
E mais adiante:
“Usamos as expressões ‘sob o pão’, ‘com o pão’, ‘no pão’ para que, com isso, se rejeite a transubstanciação papista e se indique a união sacramental entre a essência não transformada do pão e o corpo de Cristo.” (Idem, p. 476).
Até mesmo os primeiros cristãos, como Irineu, já falavam dessa união entre o pão e o corpo de Cristo, mas, como os reformadores disseram, isso não significa uma transformação essencial, como mais tarde ensinaria Roma (Idem, p. 471).

O teólogo John Stephenson escreve que os luteranos reconhecem que, após a consagração, o pão já não é um pão comum, mas o pão eucarístico — “a Eucaristia do corpo de Cristo” — composto de duas realidades: o terreno (pão e vinho) e o celestial (corpo e sangue). Porém, diz ele, “negamos que disso se deva concluir a transubstanciação como ensinam os papistas” (Stephenson, p. 110). Ou seja, há uma mudança sim — mas não uma mudança de substância. É uma mudança sacramental, não natural.

Franz Pieper, grande dogmático luterano, explica que essa união é sobrenatural, e não deve ser confundida com uma fusão ou substituição. Ele escreve: 
“As Escrituras ensinam uma união entre o elemento terreno e o celestial: o corpo de Cristo é recebido com o pão, e o sangue com o vinho” (Christian Dogmatics, v.3, p. 342). 
E ele continua: 
“O pão permanece pão, o vinho permanece vinho, mas unidos, de forma sobrenatural, ao corpo e ao sangue de Cristo” (Idem, p. 344).
Portanto, a diferença entre a doutrina da transubstanciação e a união sacramental não está no fato de uma crer e a outra não crer na presença real — ambas creem. A diferença está em como essa presença é compreendida e confessada. A transubstanciação tenta explicar o mistério, usando categorias humanas e filosóficas. A união sacramental, por outro lado, confessa o mistério com base na Palavra de Deus, sem ir além do que Cristo disse.

A Igreja Luterana permanece firme na sua confissão: na Santa Ceia, Cristo está presente com seu corpo e sangue de forma verdadeira, real e salvadora. Ele não está presente porque tentamos entender ou explicar, mas porque ele prometeu. E se ele prometeu, nós cremos, adoramos e recebemos com fé e gratidão.

No altar, o pão e o vinho continuam sendo pão e vinho — mas, unidos à Palavra, são também o corpo e o sangue de Cristo. É o Evangelho visível. É Cristo vindo a nós com seu perdão, sua vida, sua salvação.

E isso basta.

quarta-feira, 26 de março de 2025

O que difere a União Sacramental da Consubstanciação?


Recentemente, recebi uma pergunta no Instagram que é uma excelente oportunidade para explicar um ponto-chave da doutrina luterana sobre a Santa Ceia: 
“O que difere a União Sacramental da Consubstanciação?”
Essa dúvida é legítima e compreensível, especialmente porque, fora dos círculos luteranos confessionais, muita gente ainda associa os luteranos à ideia de “consubstanciação”. Mas essa associação é incorreta e, na verdade, rejeitada pela própria teologia luterana confessional.

A palavra consubstanciação não foi criada por Lutero nem aprovada pelas Confissões Luteranas. Na verdade, foi um rótulo imposto por críticos da Reforma. Como explica Stephenson (2003, p. 109), 
“a plena aceitação do paradoxo nas palavras eucarísticas por parte do Reformador foi logo parodiada pelo termo ‘consubstanciação’. Os luteranos ortodoxos nunca puderam aceitar com entusiasmo esse rótulo como sinônimo da união sacramental, uma vez que se baseia na categoria não-bíblica de ‘substância’”.
A consubstanciação, especialmente como entendida por alguns teólogos escolásticos, sugere que o pão e o corpo de Cristo se fundem numa única massa física, assim como o vinho e o sangue de Cristo. John Gerhard, citado por Stephenson (2003, p. 110), define: 
“Consubstanciação, pela qual o pão se funde com o corpo de Cristo e o vinho com Seu sangue numa única massa física”. 
Mas a teologia luterana evita esse tipo de explicação filosófica porque a presença de Cristo na Ceia é um mistério sacramental instituído pela Palavra, não algo que pode ser explicado por categorias naturais ou filosóficas.

A teologia luterana confessional, por outro lado, fala em União Sacramental (unio sacramentalis). Essa é a linguagem dos nossos símbolos de fé, especialmente na Fórmula de Concórdia. A União Sacramental reconhece que Cristo está realmente presente com seu corpo e sangue no pão e no vinho, de maneira verdadeira, real e substancial — mas não física ou local, como se ele estivesse “misturado” ao pão. Franz Pieper afirma com clareza: 
“A união da materia coelestis com a materia terrena não é uma união natural ou local, mas uma união sobrenatural (non localis inclusio, impanatio, consubstantiatio)” (PIEPER, 1953, v.3, p. 344).
Isso significa que o corpo de Cristo é recebido na Ceia de maneira sobrenatural, instituída pela Palavra de Cristo, e não como resultado de uma fusão material entre as substâncias. Como diz Pieper, 
“as Escrituras ensinam uma união (unio) entre o elemento terreno e o elemento celestial” (PIEPER, 1953, v.3, p. 342). 
Essa união sacramental é a base da afirmação de fé luterana de que, quando comemos o pão da Ceia, recebemos também o verdadeiro corpo de Cristo; e quando bebemos o vinho, recebemos o verdadeiro sangue de Cristo. Não há transformação das substâncias (como no romanismo), nem há presença simbólica (como no calvinismo ou zwinglianismo), mas há uma união real e verdadeira — sacramental.

Essa doutrina não apenas é teologicamente sólida, mas profundamente bíblica e confessional. No Catecismo Menor, Lutero ensina: 
“É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, sob o pão e o vinho, dado a nós cristãos para comer e beber, instituído pelo próprio Cristo” (Livro de Concórdia, Catecismo Menor, VI, 1)​. 
E ainda: 
“A santa ceia é pão e vinho, mas não simples pão e vinho... é e se chama corpo e sangue de Cristo” (idem, VI, 9-10)​.
A Confissão de Augsburgo, em seu artigo X, também afirma de modo claro: 
“Do Sacramento do Altar se ensina que o verdadeiro corpo e sangue de Cristo estão realmente presentes sob as espécies de pão e vinho, e que ali são distribuídos e recebidos. Rejeita-se, pois, a doutrina contrária” (Livro de Concórdia, Confissão de Augsburgo, Art. X).
Já a Fórmula de Concórdia, documento que trata de forma detalhada as controvérsias pós-Reforma, declara: 
“Cremos, ensinamos e confessamos que, na santa ceia, o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes e são verdadeiramente distribuídos e recebidos com o pão e o vinho” (Declaração Sólida, VII, 6-7)​.
A doutrina da União Sacramental também preserva a linguagem bíblica e evita mal-entendidos. Por exemplo, os luteranos foram injustamente acusados de crer em uma “presença carnal e grosseira” (uma ideia capernaitica, como se Cristo fosse mastigado com os dentes). Mas como esclarece Stephenson (2003, p. 109), 
“com a palavra ‘espiritual’ rejeitamos a noção capernaitica de uma presença grosseira e carnal, que os sacramentarianos atribuem falsamente às nossas igrejas”.
Em resumo, a doutrina luterana sobre a Ceia do Senhor é marcada por reverência e fidelidade às palavras de Cristo, sem se aventurar em especulações filosóficas. A Santa Ceia é, antes de tudo, dom, não teoria. Nela, recebemos de forma verdadeira e salvadora o próprio Cristo, com seu corpo entregue e sangue derramado por nós para o perdão dos pecados.

A diferença entre União Sacramental e Consubstanciação é, portanto, essencialmente uma diferença entre confessar e explicar. E como igreja que vive da Palavra, preferimos confessar o que Cristo disse — e descansar em Sua promessa.

Por isso, é importante dizer com toda clareza: a Igreja Luterana não ensina nem adota a doutrina da consubstanciação. Essa ideia foi atribuída aos luteranos de forma equivocada, e historicamente rejeitada por nossos teólogos e confissões.

A doutrina bíblica ensinada pela Igreja Luterana — e fielmente confessada nos escritos do Livro de Concórdia — é a da União Sacramental (unio sacramentalis). Nela, reconhecemos que, por força da Palavra de Cristo, o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Jesus estão unidos ao pão e ao vinho no Sacramento do Altar. Essa é a nossa confissão: simples, profunda e cheia de consolo.

Rev. Filipe Schuambach Lopes


Referências:
PIEPER, Franz. Christian Dogmatics. Volume 3. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1953.
STEPHENSON, John R. The Lord’s Supper. Confessional Lutheran Dogmatics, vol. XII. St. Louis: Luther Academy, 2003.
LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução de Arnaldo Schüler. Edição revisada por Yedo Brandenburg. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2021.

Reverência ao Altar: apenas no Culto ou sempre?

Recebi essa pergunta pelo Instagram:
"Quanto à reverência ao chegar no altar, é só no culto ou em qualquer momento?"
Essa pergunta toca em algo muito precioso para a vida litúrgica da Igreja: a reverência diante da presença de Cristo. E a resposta, embora simples, tem implicações profundas. A reverência ao altar não se limita ao momento do culto, porque ela expressa algo que é permanente: o reconhecimento da presença real de Cristo em seu Corpo e Sangue, como ele mesmo prometeu.

Desde pequeno, aprendemos que o altar não é apenas uma peça de mobília litúrgica. Ele é, na verdade, o centro do culto cristão. De acordo com a tradição bíblica e litúrgica da Igreja, o altar é onde céu e terra se encontram: é o lugar em que Cristo torna sua presença conhecida ao povo, por meio do seu verdadeiro Corpo e Sangue, oferecidos sob pão e vinho. Ali também se elevam as orações dos santos ao trono de Deus (COOPER, 2018, p. 38, 42). Por isso, o altar é muito mais que símbolo; é sinal sacramental da presença e ação de Cristo em favor do seu povo.

Quando nos aproximamos do altar, fazemos isso como quem se aproxima de um lugar santo. Como lembra Just, o altar é o “lugar mais santo da igreja”, o equivalente ao Santo dos Santos do Antigo Testamento. A arquitetura litúrgica, inclusive, foi pensada para conduzir os olhos e o coração até ele, pois é ali que se dá o encontro com a nova Jerusalém (JUST, 2008, p. 66, 111, 113). Ao aproximar-se do altar e receber os dons de Cristo, o cristão adentra um espaço sagrado, um "anticipo da festa futura".

Por isso, é natural que ao entrar na igreja ou ao se aproximar do altar — seja no culto ou em outro momento — o cristão manifeste reverência com gestos como inclinar-se, ajoelhar-se ou manter-se em silêncio. Cooper esclarece que esse gesto de reverência não é prestado ao móvel em si, mas a Cristo, que está verdadeiramente presente naquele lugar. E se Cristo está realmente ali, então é apropriado adorá-lo — não de forma vazia ou supersticiosa, mas como quem reconhece que aquele pão e aquele vinho consagrados são, naquele momento, o verdadeiro Corpo e Sangue do Filho de Deus (COOPER, 2018, p. 38, 61).

É importante dizer que tais gestos não são obrigatórios. Não há um mandamento que imponha ajoelhar-se ou curvar-se diante do altar. No entanto, são altamente recomendados como expressões de fé viva e piedosa. A liberdade cristã permite que esses gestos variem conforme a tradição local, a arquitetura da igreja ou as condições físicas de quem os realiza. O que importa é que, quando feitos, sejam expressão sincera de fé na presença de Cristo, e não mero formalismo.

Lang, em seu manual, destaca que o altar não é apenas um móvel funcional, como o púlpito, mas um monumento visível da presença graciosa de Deus no meio da congregação. É o lugar onde se consagra e se distribui o Corpo e Sangue de Cristo, mas também o símbolo do sacrifício de Cristo e da oração dos fiéis. Por isso, ele afirma que reverência diante do altar é reverência diante do próprio Deus, não por causa do material de que é feito, mas pelo que ele representa e realiza no culto (LANG, 1987.).

Também à luz das Escrituras e das Confissões Luteranas, sabemos que o gesto externo corresponde a uma realidade interna: discernir o Corpo do Senhor não é apenas um ato da mente ou do coração, mas também do corpo (1Co 11.29). O modo como tratamos os elementos consagrados, como os recebemos, e como nos conduzimos diante deles comunica aquilo que cremos e ensinamos. Isso se aplica tanto à proclamação do pastor quanto aos gestos litúrgicos usados na celebração (Stuckwisch, 2012).

Por tudo isso, a reverência ao altar não se limita ao momento da Santa Ceia. Trata-se de uma atitude contínua, coerente com a fé que confessa que ali, naquele altar, Cristo está presente para o seu povo. Mesmo fora do culto, aquele espaço mantém seu caráter sagrado, e por isso merece respeito e honra.

Portanto, sim — é altamente recomendável demonstrar reverência sempre que se estiver diante do altar. Não porque o altar em si tenha poder, mas porque ali, pela promessa de Cristo e por sua Palavra, Deus está presente com graça, perdão e salvação. E onde ele está, não cabe outra postura senão a de humildade, temor e gratidão.
Rev. Filipe Schuambach Lopes

MATERIAL COMPLEMENTAR:

COOPER, Jordan. Liturgical Worship: A Lutheran Introduction. Watseka, IL: Just and Sinner Publishing, 2018.

JUST JR., Arthur A. El cielo en la tierra: los dones de Cristo en el servicio divino. St. Louis: Concordia Publishing House, 2008.

LANG, Hermann. Manual da Comissão de Altar. Tradução de Vilson Scholz. Porto Alegre: Editora Concórdia, [1987].

STUCKWISCH, Rick. Discerning the Lord’s Body. Gottesdienst: The Journal of Lutheran Liturgy, 22 set. 2012. Disponível em: https://www.gottesdienst.org/gottesblog/2012/09/discerning-lords-body.html. Acesso em: 26 mar. 2025.

LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução de Arnaldo Schüler. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2021.

segunda-feira, 24 de março de 2025

O Culto Luterano: Parte III - O Céu na Terra: a presença de Cristo no Culto Divino

A Palavra do Senhor é viva, eficaz e permanece para sempre (Hebreus 4.12; 1Pedro 1.23-25). Ela é uma Palavra que traz vida e age em nós, cumprindo sempre o que promete: perdoar nossos pecados e nos dar vida e salvação. Essa Palavra realiza tudo isso porque é o próprio Cristo, e ele é a única fonte de graça abundante (João 1.14).

Ele age em nós quando somos unidos a ele no Batismo, ouvimos sua Palavra pregada no púlpito e recebemos sua própria vida ao participarmos do seu Corpo e Sangue na Santa Ceia (Romanos 6; Romanos 10.17; 1Coríntios 10.16). Se temos este Jesus real, presente e visível, então também temos o céu, a comunhão dos santos e o acesso ao Pai, todas as vezes que nos reunimos no Dia do Senhor.

Como isso pode acontecer? Porque Cristo traz o Reino de Deus até nós. A Igreja Triunfante está onde ele está, pois somos o Seu corpo, e ninguém pode chegar ao Pai sem passar por ele (Mateus 3.2; 4.17; João 14.6; Romanos 12.5; 1Coríntios 12.12,27; Efésios 5.29; Colossenses 1.24). Isso significa que, no culto, o céu e a terra se unem, pois Cristo está presente, entregando-nos sua Palavra e seu Sacramento.

Altar da Congregação São Paulo (IELB) de Novo Hamurgo - RS
Por isso, algumas igrejas têm sobre o altar uma imagem do Cristo ressuscitado, para lembrar que ele está realmente presente conosco (Mateus 28.20). É também por isso que os pastores e auxiliares usam vestes brancas, simbolizando nossa união com a multidão daqueles que já partiram desta terra e estão desfrutando da glória nos céus (santos), vestidos com as vestes do Batismo (Apocalipse 7.9).

No culto, participamos do louvor celestial, cantando as mesmas palavras dos anjos e daqueles que já partiram desta terra e estão desfrutando da glória nos céus (santos), que já estão diante de Deus (Lucas 2.14; Apocalipse 5.12-13; 19.5-9; Isaías 6.3). Tudo o que fazemos no culto proclama, de maneira forte e clara, que Cristo está presente entre nós, entregando-nos Seus dons na Palavra e no Sacramento.

Nosso Senhor, junto com o próprio céu, se ocupa em perdoar pecadores e torná-los verdadeiramente santos — pessoas com valor, dignidade e uma nova identidade em Cristo. Pela sua graça, a Palavra viva e eficaz nos concede nova vida: uma vida plena, que começa já agora e se estende por toda a eternidade.

Assim, a cada semana, ao sairmos do Culto Divino, levamos conosco a paz que o mundo não pode oferecer — uma paz que foi colocada em nossas mãos pelo próprio Senhor Jesus Cristo, a Palavra viva e eterna, presente entre nós. Graças a Deus por tamanha dádiva!

quarta-feira, 5 de março de 2025

A Quarta-feira de Cinzas

A Santa Igreja inicia o período da Quaresma com a observância da Quarta-feira de Cinzas.

Duas palavras importantes para hoje: "Lembre-se e Retorne."

Lembre-se. Essa é a palavra que acompanha as cinzas, que dão nome a este dia: “porque você é pó, e ao pó voltará” (Gn 3.19). Palavras tristes de um dos dias mais tristes da história da humanidade. O dia em que Adão e Eva abriram a porta para a morte entrar em seus corpos, neste mundo e na vida de seus filhos (Rm 5.12). Desde então, o túmulo se tornou o destino comum de todos nós (Ec 3.20). Muitas vezes, ajudamos uns aos outros a chegar até ele. Como Lutero escreveu em seu hino: “em meio à vida, estamos envoltos pela morte”.[1] Acidentes, doenças, maldade, assassinatos – tudo isso nos rodeia. Então, lembre-se, ó homem, que és pó e ao pó voltarás (Gn 3.19; Ec 12.7). Cinzas às cinzas. Pó ao pó.

As cinzas deste dia não têm a ver com o jejum. Nosso Senhor nos advertiu a não fazer do jejum um espetáculo público, desfigurando o rosto (Mt 6.16-18). Em vez disso, as cinzas de hoje simplesmente anunciam: “Você está olhando para um homem que está morrendo, vivendo entre outros que também estão morrendo. Não sabemos quando, mas sabemos que o túmulo é nosso destino”. Lembre-se.

Mas lembre-se disso também: as cinzas serão colocadas na sua testa em forma de cruz. A cruz daquele que se tornou pó e cinzas para tirar o pecado que causa a nossa morte (Is 53.4-5), carregá-lo sobre si e destruí-lo (Cl 2.14), assim eliminando o poder da morte (1Co 15.54-57). Lembre-se de que ele ressuscitará nossos corpos pelo seu Espírito que dá vida no Último Dia (Rm 8.11). Lembre-se disso também!

Lembrando de tudo isso, retorne! “Convertam-se ao Senhor, seu Deus, porque ele é bondoso e compassivo, tardio em irar-se e grande em misericórdia” (Joel 2.13). Retorne, converta-se porque você se lembra que está morrendo e sabe por que está morrendo (Rm 6.23). Volte para aquele que tem mais vida para te dar do que você tem morte, mais perdão do que você tem pecado (1Jo 1.9). Volte para aquele que te espera ansiosamente (Lc 15.20). Aquele que nunca diz: “Você de novo, pedindo perdão?” Mas, ao contrário, aquele cujo amor constante sempre te envolve e te acolhe em casa (Sl 103.12-13).

Oração do dia
Todo-poderoso e eterno Deus, que não desprezas o que foi criado por ti e perdoas os pecados de todos os que se arrependem, cria em nós um novo e contrito coração, a fim de que, lamentando nossos pecados e reconhecendo nossa miséria, recebamos de ti total absolvição e perdão; através de Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.

Fonte: WEEDON, William. Celebrating the Saints (Concordia Publishing House, 2016)

[1] Você conferir toda a letra da música in Obras Selecionadas, vol.7, hinos, “em meio à vida, estamos envolvidos pela morte”, p. 507.

O Tempo da Páscoa e o Período da Quaresma

Um cordeirinho quer levar
a culpa dos culpadose com paciência carregar
dos homens os pecados.
Curvado sob pesada cruz,
privado de consolo e luz,
caminha para a morte.
Entrega-se ao vil matador,
não teme cravos nem dor,
não chora a sua sorte. (HL 89.1)
A Páscoa celebra o evento mais importante da vida de Cristo e foi a principal celebração entre os primeiros cristãos. Como a Páscoa é uma data móvel e também uma das maiores festas do Ano Eclesiástico, ela determina grande parte do calendário litúrgico da Igreja. De maneira geral, a Páscoa é celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia, que ocorre após ou no equinócio de outono. A data da Páscoa influencia diretamente o dia da Quarta-feira de Cinzas, que acontece quarenta dias antes da Páscoa (sem contar os domingos); a data da Transfiguração, que é o domingo anterior à Quarta-feira de Cinzas; e também o número de domingos durante o Tempo da Epifania e após o Pentecostes.

Período da Quaresma
Durante quarenta dias, excluindo os domingos (que continuam sendo celebrações da Ressurreição), a Igreja observa o período da Quaresma.
Às margens dos rios da Babilônia, nós nos assentávamos
e chorávamos, lembrando-nos de Sião. (Salmo 137.1)
A Quaresma começa com essa percepção. Somos um povo exilado. Estamos vagando longe de nossa verdadeira casa. E, assim, o início do arrependimento não é apenas o medo que encontramos ao vagar em uma terra estranha. O começo do arrependimento é sempre a saudade de casa—algo que o Espírito Santo desperta dentro de nós para nos fazer desejar o lar. Na Igreja, às vezes vislumbramos essa pátria de uma maneira que não experimentamos em nenhum outro lugar, enquanto o Espírito agita em nós a fome por ela. Sentimos uma dor por casa; ansiamos por ela. O lar é a comunhão com a Santíssima Trindade, na companhia dos santos anjos e de todos os redimidos.

A Quaresma nos ensina a confessar quantas vezes nos acomodamos na terra do exílio, como se fosse nossa verdadeira morada. Ela nos confronta com a maneira como tentamos acalmar o desejo que o Espírito criou, nos perdendo em prazeres físicos ou psicológicos. Mas isso nunca funciona. Tudo sobre a existência da Igreja desperta essa saudade em nós. Por meio de seus hinos, sua liturgia, suas leituras e suas disciplinas, ela busca nos ajudar a sentir essa falta e desejar aquilo que nunca será totalmente satisfeito deste lado do céu.

Até mesmo a Santa Ceia faz esse desejo crescer ainda mais em nós, pois percebemos que é isso que ansiamos: não apenas o momento breve de estar de joelhos diante do altar, mas a união eterna com Cristo; sua vida sendo nossa vida; sua alegria, nossa alegria; sua paz, nossa paz. No entanto, esse breve gosto é suficiente para nos assegurar que temos um lar e nos faz determinados a não nos contentarmos com nada menos.

Fonte: WEEDON, William. Celebrating the Saints (Concordia Publishing House, 2016)