terça-feira, 19 de agosto de 2025

O Filioque


Introdução
O artigo de fé sobre a Santíssima Trindade ocupa lugar central na confissão cristã desde os primeiros séculos da Igreja. Nele, a Igreja reconhece e adora a um só Deus em três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, iguais em essência, majestade e glória. A formulação dessa fé foi consolidada nos credos ecumênicos, em especial o Credo Niceno-Constantinopolitano, que serviu de fundamento para a doutrina cristã em todo o mundo. Contudo, a inclusão posterior da cláusula Filioque , “e do Filho”, no artigo referente à procedência do Espírito Santo, tornou-se um ponto de forte controvérsia entre o Oriente e o Ocidente.

No coração do debate está a questão de como expressar, sem contradição, a relação eterna entre as pessoas divinas, particularmente a origem do Espírito Santo. A tradição ocidental, em grande parte marcada pela herança agostiniana, acrescentou a afirmação de que o Espírito Santo procede “do Pai e do Filho”. Já o Oriente permaneceu fiel à formulação original do Concílio de Constantinopla (381), confessando a procedência “do Pai”, considerando que qualquer adição romperia a fidelidade ao texto conciliar e comprometeria a primazia do Pai como fonte da Trindade.

A Reforma Luterana herdou essa tensão e, ao mesmo tempo, buscou reafirmar a fidelidade às Escrituras e aos credos ecumênicos. Nas Confissões Luteranas, o ensino sobre a Trindade e a procedência do Espírito Santo ocupa um espaço importante, especialmente no Credo Niceno, no Credo Atanasiano e nas explicações catequéticas. Assim, compreender a questão do Filioque não é apenas revisitar uma antiga controvérsia, mas refletir sobre como a Igreja Luterana, fiel ao Evangelho e ao testemunho apostólico, confessa a unidade e a distinção das pessoas divinas em linguagem clara, precisa e bíblica.

Este estudo, portanto, propõe-se a examinar a questão do Filioque à luz das Confissões Luteranas e da teologia trinitária confessada pela Igreja, dialogando com a história do dogma, as disputas entre Oriente e Ocidente e as interpretações teológicas contemporâneas. O objetivo é oferecer não apenas uma análise histórica, mas também um discernimento confessional, que aponte para a centralidade da fé trinitária como coração da doutrina cristã.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Festa de Santa Maria, Mãe do Nosso Senhor - 15 de agosto

Hoje, a Igreja Luterana se alegra em celebrar a Festa de Santa Maria, Mãe do Nosso Senhor, recordando seu adormecer em fé: a Dormição.

Esta celebração não é apenas sobre a vida de Maria, mas também sobre a promessa que Deus faz a todos os que creem: a morte, para os cristãos, é apenas um sono temporário do qual Cristo nos despertará na ressurreição.

Uma festividade enraizada na história da Igreja
A festividade litúrgica de 15 de agosto remonta à antiga tradição da Igreja. O imperador bizantino Maurício (582–602 d.C.) estabeleceu este dia como a celebração da Dormição de Maria, recordando seu “adormecer” no Senhor. Já no início do século V, registros armênios chamavam o dia 15 de agosto de “dia de Maria, a Mãe de Deus” (Theotokos). Enquanto a Igreja Católica Romana, em 1950, definiu o dogma da Assunção corporal de Maria, a Igreja Luterana e a Ortodoxa preservaram a compreensão mais antiga: neste dia, lembramos que Maria, assim como todos os santos, viveu, envelheceu e morreu, sendo recebida pelo seu Filho no descanso eterno.

Maria: santa, especial e próxima de nós
Maria é santa, especial, escolhida por Deus, mas, ao mesmo tempo, é uma de nós. Viveu como qualquer outra pessoa, guardou no coração as palavras do Evangelho (Lucas 2.19), enfrentou alegrias e dores, e permaneceu fiel ao seu Senhor mesmo sem compreender tudo o que via. Ela foi, como disse Arthur Just, “a primeira catecúmena e a primeira cristã da nova aliança”, pois ouviu e guardou a Palavra de Deus.

Presença constante na vida de Jesus
O Novo Testamento nos mostra Maria presente em quase todos os momentos marcantes da vida de Jesus:
  • na Anunciação (Lucas 1.26-38);
  • na Visitação a Isabel (Lucas 1.39-56);
  • no nascimento do Salvador (Lucas 2.1-7);
  • nas visitas dos pastores (Lucas 2.8-20) e dos magos (Mateus 2.1-12);
  • na Apresentação no Templo (Lucas 2.22-38);
  • na fuga para o Egito (Mateus 2.13-15);
  • na visita pascal a Jerusalém (Lucas 2.41-52);
  • nas bodas de Caná, onde nos ensinou: “Façam tudo o que ele disser.” (João 2.1-11);
  • ao pé da cruz, quando Jesus a confiou ao cuidado de João (João 19.25-27);
  • e com os apóstolos no cenáculo, aguardando o Espírito Santo (Atos 1.12-14).
Sua obediência (“que aconteça comigo conforme a sua palavra”, Lucas 1.38) e sua lealdade a Cristo mesmo nas horas de dor fazem dela um exemplo para todos os crentes.

O cântico de Maria: Magnificat
O cântico de Maria, o Magnificat (Lucas 1.46–55), é a sua confissão de fé e louvor. Ele se divide em duas partes: na primeira, Maria celebra as grandes coisas que Deus fez por ela, reconhecendo que sua bem-aventurança vem da graça divina; na segunda, exalta a misericórdia de Deus cumprindo suas promessas a Abraão e ao seu povo. Lutero, ao comentar o Magnificat, lembra que a primeira e maior obra de Deus em Maria foi “o contemplar”, quando Deus volta o seu rosto para alguém, concede pura graça e bênção. Honrar Maria, diz Lutero, é vê-la diante de Deus e abaixo de Deus, maravilhando-se com a graça que a alcançou e, por meio dela, chegou a nós no Salvador.

A Dormição: sinal da nossa esperança
A Dormição de Maria aponta para a nossa própria esperança. Cristo, o Filho de Maria, morreu e ressuscitou, garantindo que todos os que Nele confiam não morrerão eternamente. Para o cristão, a morte é “adormecer no Senhor” (João 11.11), aguardando o despertar no último dia. Como Maria, não somos poupados da morte física, mas somos recebidos nas moradas eternas, e nossos corpos serão ressuscitados para a vida eterna.

Uma festa centrada em Cristo
A Igreja Luterana não ensina dogmaticamente que Maria foi assumida ao céu em corpo, mas reconhece que Deus a guardou em fé até o fim e a recebeu na glória eterna. Este dia, portanto, não é apenas sobre um acontecimento na vida dela, mas sobre a promessa de Deus a todos nós: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (João 11.25).

Celebrar a Dormição é, também, confessar que Cristo continua vindo ao seu povo hoje, assim como veio a Maria, trazendo o único remédio eficaz contra a morte: seu verdadeiro Corpo e Sangue na Santa Ceia. Ele recebeu este Corpo e Sangue de sua mãe, e agora os oferece a todos os que creem, prometendo: “quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” (João 5.24).

Por isso, o centro litúrgico desta festa é a Santa Ceia, onde Cristo, o Filho de Deus e Filho de Maria, vem a nós para nos fortalecer no caminho até a vida eterna. Como diz o apóstolo: “Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor.” (Romanos 14.8).

A cor litúrgica do dia
Hoje, a cor litúrgica é branca, símbolo da alegria, pureza e vitória que temos em Cristo. É a cor das festas de nosso Senhor e daqueles que, como Maria, confessaram e seguiram a Cristo até o fim.

Unidos na mesma fé
Unidos à fé de Maria e de todos os santos, celebramos a fidelidade de Deus e a certeza de nossa salvação em Cristo. E, com Maria, cantamos: “A minha alma engrandece ao Senhor, … porque o Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome.” (Lucas 1.46–49).

FESTA DE SANTA MARIA, MÃE DO SENHOR
Liturgia da Palavra

INTRÓITO Salmo 34.2-5; antífona Salmo 34.1
1Bendirei o Senhor em todo o tempo,
    o seu louvor estará sempre nos meus lábios.
2Bem-aventurado é aquele a quem o Senhor não atribui iniquidade
    e em cujo espírito não há engano.
3Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos
    pelos meus constantes gemidos todo o dia.
4Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim,
    e o meu vigor secou como no calor do verão.
5Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei.
    Eu disse: “Confessarei ao Senhor as minhas transgressões”.
    Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,
    como era no princípio, agora é, e para sempre será –
    de eternidade a eternidade. Amém.
1Bendirei o Senhor em todo o tempo,
    o seu louvor estará sempre nos meus lábios.

PRIMEIRA LEITURA Isaías 61.7-11
Leitura do livro do profeta Isaías, capítulo 61.
7Em lugar de vergonha, vocês terão dupla honra;
em lugar da afronta, exultarão na herança recebida;
por isso, em sua terra possuirão o dobro e terão perpétua alegria.
8“Porque eu, o Senhor, amo a justiça e odeio a iniquidade do roubo;
em fidelidade lhes darei a sua recompensa e com eles farei aliança eterna.
9A posteridade deles será conhecida entre as nações,
os seus descendentes, no meio dos povos;
todos os que os virem reconhecerão que eles são família bendita do Senhor.”
10Tenho grande alegria no Senhor!
A minha alma se alegra
no meu Deus, porque me cobriu de vestes de salvação
e me envolveu com o manto de justiça,
como noivo que se adorna de turbante,
como noiva que se enfeita com as suas joias.
11Porque, como a terra produz os seus renovos,
e como o jardim faz brotar o que nele se semeia,
assim o Senhor Deus fará brotar a justiça
e o louvor diante de todas as nações.
    Esta é a Palavra do Senhor.
    C Demos graças a Deus.

SALMODIA Salmo 45.10-17 (antífona vers. 6)
6O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre;
cetro de justiça é o cetro do teu reino.
10Ouça, filha, olhe e preste atenção:
esqueça o seu povo e a casa de seu pai.
11Então o rei ficará encantado com a sua formosura;
por ser ele o seu senhor, incline-se diante dele.
12A filha de Tiro virá trazendo presentes;
os mais ricos do povo lhe pedirão favores.
13A filha do rei é toda formosura no interior do palácio;
os seus vestidos são enfeitados de ouro.
14Em roupas bordadas conduzem-na diante do rei;
as virgens, suas companheiras que a seguem, serão trazidas à sua presença, ó rei.
15Serão conduzidas com alegria e regozijo;
entrarão no palácio do rei.
16Em lugar de seus pais, estarão os seus filhos,
colocados como príncipes por toda a terra.
17Farei com que o seu nome seja celebrado de geração em geração,
e, assim, os povos o louvarão para todo o sempre.
    Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,
    como era no princípio, agora é, e para sempre será –
    de eternidade a eternidade. Amém.
6O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre;
cetro de justiça é o cetro do teu reino.

GRADUAL Salmo 45.13-14
A filha do rei é toda formosura no interior do palácio;
    os seus vestidos são enfeitados de ouro.
Em roupas bordadas conduzem-na diante do rei;
    as virgens, suas companheiras que a seguem, serão trazidas à sua presença, ó rei.

SEGUNDA LEITURA Gálatas 4.4-7
L Leitura da carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 4.
4Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, 5para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. 6E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho ao nosso coração, e esse Espírito clama: “Aba, Pai!” 7Assim, você já não é mais escravo, porém filho; e, sendo filho, também é herdeiro por Deus.
   L Esta é a Palavra do Senhor.
   C Demos graças a Deus.

VERSO Lucas 1.47
Aleluia. “A minha alma engrandece ao Senhor,
e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador. Aleluia.

SANTO EVANGELHO Lucas 1. (39-45) 46-55
P Leitura do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas.
C Glórias a ti, Senhor.
39Naqueles dias, Maria se aprontou e foi depressa à região montanhosa, a uma cidade de Judá. 40Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. 41Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre. Então Isabel ficou cheia do Espírito Santo. 42E exclamou em alta voz: — Bendita é você entre as mulheres, e bendito o fruto do seu ventre! 43E que grande honra é para mim receber a visita da mãe do meu Senhor! 44Pois, logo que me chegou aos ouvidos a voz da saudação que você fez, a criança estremeceu de alegria dentro de mim. 45Bem-aventurada a que creu, porque serão cumpridas as palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor.
46Então Maria disse:
“A minha alma engrandece ao Senhor,
47e o meu espírito se alegrou
em Deus, meu Salvador,
48porque ele atentou
para a humildade da sua serva.
Pois, desde agora, todas as gerações
me considerarão bem-aventurada,
49porque o Poderoso me fez grandes coisas.
Santo é o seu nome.
50A sua misericórdia vai
de geração em geração
sobre os que o temem.
51Agiu com o seu braço valorosamente;
dispersou os que, no coração,
alimentavam pensamentos soberbos.
52Derrubou dos seus tronos os poderosos
e exaltou os humildes.
53Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos.
54Amparou Israel, seu servo,
a fim de lembrar-se
da sua misericórdia
55a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
como havia prometido aos nossos pais.”
    P Este é o Evangelho do Senhor.
    C Glórias a ti, ó Cristo.

ORAÇÃO DO DIA
Todo-poderoso Deus, que escolheste a Virgem Maria para ser a mãe de teu único Filho, concede que nós, que somos redimidos pelo sangue dele, tomemos parte com ela na glória de teu reino eterno; através de Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

“Com toda a companhia celeste”: Anjos, Santos e nossos entes queridos falecidos na Mesa do Senhor



“COM TODA A COMPANHIA CELESTE”:
ANJOS, SANTOS E NOSSOS ENTES QUERIDOS FALECIDOS NA MESA DO SENHOR

Por Arthur A. Just
Tradução: Rev. Filipe Schuambach Lopes

No Monte da Transfiguração o céu e a terra se uniram no corpo glorificado de Jesus. Pedro, Tiago e João, três dos discípulos de Jesus, subiram com Ele ao monte para esse encontro com Moisés e Elias, dois seres celestiais. Nessa comunhão entre corpos celestiais e terrenos ao redor do corpo branco e resplandecente de Jesus, vemos uma imagem do que acontece no Culto Divino, ao redor da presença física de Jesus, na liturgia da Palavra e na Ceia do Senhor.

Nesse encontro glorioso Pedro, Tiago e João puderam ouvir a conversa celestial de Moisés e Elias. E qual era essa conversa? Moisés e Elias, vindos do céu, certamente falavam sobre o êxodo que Jesus estava para cumprir em Jerusalém, que é o seu sofrimento, morte, ressurreição e ascensão. Pois esse é o cântico de todo o céu, louvores ao Cordeiro que foi morto e vive outra vez (Apocalipse 5). É isso que nossas liturgias devem sempre proclamar, que o Cristo glorificado e ascendido está presente entre nós com suas feridas para nos oferecer os dons do seu êxodo, que são perdão, vida e salvação.

Quando vamos ao Culto Divino para ouvir a Palavra de Jesus e comer o seu corpo e sangue, estamos entrando na Jerusalém celestial. E assim não estamos sozinhos na comunhão com a presença física de Jesus. Como diz a nossa liturgia, adoramos “com os anjos e arcanjos e com toda a companhia celeste”. Essa “companhia celeste” inclui todos os santos que morreram em Cristo e agora vivem com Ele.

Na Ceia do Senhor nos unimos a um mundo além de nós, recebemos dons do céu na carne de Jesus. Aceitamos o grande mistério de que o céu vem à terra por meio da presença física do nosso Salvador. Muitas vezes pensamos no céu de forma abstrata, como se fosse “lá em cima”. Mas o céu é onde Jesus está, onde a sua Palavra e seus dons são recebidos pela fé. Como Jesus está presente entre nós nos dons da Palavra e do Sacramento, o próprio céu está presente entre nós. Nosso culto é o mundo de “anjos e arcanjos e toda a companhia celeste”. Essas palavras da liturgia vêm de Hebreus 12.22-24:

Pelo contrário, vocês chegaram ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a milhares de anjos. Vocês chegaram à assembleia festiva, a igreja dos primogênitos arrolados nos céus. Vocês chegaram a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o sangue de Abel.

A chegada ao monte Sião, à presença de Deus, já começou aqui na terra. O monte Sião, a cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, não é um lugar específico em Israel, é onde Cristo está presente, com sua natureza divina e humana. O que os ouvintes do primeiro século pensaram ao ouvir essa passagem? Eles sabiam que “monte Sião” era o lugar onde Cristo fala e age pelo Pai. Esse lugar é a liturgia, onde a Palavra de Cristo traz a purificação dos pecados pela pregação e pela Ceia do Senhor. Ao entrarmos na presença de Deus em Jesus, o céu na terra já começa agora na vida eucarística da Igreja, mesmo que só alcance sua plenitude quando vivermos totalmente a presença de Cristo na festa celestial. Como vemos no Monte da Transfiguração e no monte Sião, a liturgia da Palavra e do Sacramento é o momento em que o céu vem à terra.

Nossa liturgia traz outra referência do Novo Testamento para descrever essa realidade do céu na terra, no hino que cantamos no tempo pascal, “Esta é a Festa”.[1] O conteúdo desse grande hino vem do Apocalipse de João. Esse hino de toda criatura que agora cantamos como povo de Deus é também o cântico das hostes celestiais, dos santos junto ao mar de vidro com harpas de Deus nas mãos, o cântico de Moisés e do Cordeiro, que anunciam vitória sobre a besta (Apocalipse 15.2-5). É também o cântico da multidão nas bodas do Cordeiro (Apocalipse 19.1-10). Nesse hino de vitória o céu e a terra se unem cantando “Honra, graças, glória e poder ao Cordeiro e a Deus para sempre.”. E o céu e a terra também cantam juntos “Amém”. Nossa comunhão com o céu aqui na terra é expressa de forma linda na última estrofe do hino, “o Cordeiro que morreu começou o seu Reino. Aleluia.” O início do reinado do Cordeiro é o contínuo banquete vitorioso da Palavra e do Sacramento que os cristãos celebram desde o primeiro Pentecostes e continuam celebrando até hoje.

Por muitos anos, ao falar sobre a liturgia histórica nas congregações, eu dizia às pessoas sobre “os anjos, arcanjos e toda a companhia celeste”. Era surpreendente ver quantas nunca tinham ouvido o real sentido dessas palavras, como em toda Ceia do Senhor minha esposa e eu lembramos da irmã dela que morreu tragicamente aos 22 anos. Como lembramos daqueles que faleceram recentemente e que conhecemos. Como eles estão conosco em Cristo. Como nossas vozes aqui na terra se unem às deles no céu quando cantamos “Santo, santo, santo é o Senhor Deus dos Exércitos, o céu e a terra estão cheios da tua glória”. Como, na comunhão dos santos, temos essa união misteriosa com Cristo e com todos os santos que morreram e agora vivem em Cristo. Como a luta deles acabou, o sofrimento cessou e, como nós, aguardam a ressurreição do corpo. Como, enquanto esperamos o Senhor voltar, continuamos em comunhão com eles. Como o mesmo Cristo em quem eles habitam também habita conosco no seu corpo e sangue. Como Cristo, cuja presença entre nós traz todo o céu com ele, é o centro da adoração no céu e na terra. Pois o “sangue da aspersão [...] fala melhor do que o sangue de Abel.” (Hb 12.24) porque “digno é o Cristo, Cordeiro e Senhor, cujo sangue libertou o povo de Deus… O Cordeiro que morreu começou o seu Reino. Aleluia.”

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[1] Temos a versão deste hino em português, traduzida pelo pastor Martim Carlos Warth. Não há informação sobre a data em que essa tradução foi feita. Disponibilizo abaixo a partitura e a versão original em inglês, bem como o texto em português.

Texto em português (tradução de Martim Carlos Warth):

Esta é a festa da vitória do nosso Deus.
Aleluia, aleluia, aleluia!

1. Digno é o Cristo, Cordeiro e Senhor;
seu sangue libertou o povo de Deus.
Esta é a festa da vitória do nosso Deus.
Aleluia, aleluia, aleluia!

2. Tem saber, riqueza, poder;
dai honra, graças e glórias a Deus.
Esta é a festa da vitória do nosso Deus.
Aleluia, aleluia, aleluia!

3. Cante todo o povo de Deus
com todo o louvor da criatura:
4. honra, graças, glória e poder
ao Cordeiro e a Deus, para sempre. Amém.

Esta é a festa da vitória do nosso Deus.
Aleluia, aleluia, aleluia!

5. O Cordeiro que morreu
começou o seu Reino. Aleluia!

Esta é a festa da vitória do nosso Deus.
Aleluia, aleluia, aleluia!





quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Pastor e a Batalha Invisível

O Pastor e a Batalha Invisível
Uma reflexão poderosa de fé, coragem e vocação pastoral

Por Rev. Duane Bamsch — tradução autorizada

Dias atrás, lendo o blog Gottesdienst, me deparei com um texto que me impactou profundamente como pastor. O título original é “Encouragement for Brother Pastors”, e seu autor é o Rev. Duane Bamsch, pastor luterano nos Estados Unidos.

Tocado pela profundidade e honestidade com que ele fala sobre a vocação pastoral, entrei em contato diretamente com o autor. Para minha alegria, o Pr. Duane me respondeu com gentileza e autorizou a tradução e a publicação do texto aqui no blog.

Este é um texto fortíssimo. Verdadeiro. Doloroso e, ao mesmo tempo, cheio de consolo. Uma leitura essencial, especialmente para aqueles que desejam entender o que se passa no coração de um pastor fiel, ou para aqueles que também vivem esse ministério, enfrentando suas alegrias e suas cruzes.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Comemoração de São José de Arimateia - 31 de julho



Hoje, a santa Igreja se alegra ao lembrar José de Arimateia.

José de Arimateia é mencionado por todos os quatro evangelistas: Mateus (27.57–60), Marcos (15.42–46), Lucas (23.50–53) e João (19.38–42). Ele era natural de uma pequena aldeia chamada Arimateia, nas colinas da Judeia. Homem rico e respeitado membro do Sinédrio judeu, José havia preparado para si mesmo um túmulo novo. Com coragem, dirigiu-se a Pilatos e pediu permissão para sepultar o corpo de Jesus em seu próprio túmulo.

João relata em seu Evangelho (capítulo 19) que José contou com a ajuda de Nicodemos na difícil tarefa de retirar o corpo do Senhor da cruz. Juntos, levaram o corpo de Jesus ao túmulo que pertencia a José, acompanhados de uma grande quantidade de especiarias. Eles envolveram o corpo de Cristo em linho limpo e o sepultaram às pressas, pois o pôr do sol marcava o início do sábado. As mulheres que seguiam Jesus observaram o local e planejavam retornar após o sábado para completar os ritos de preparação do corpo, mas encontraram, em vez disso, a surpreendente realidade da ressurreição.

Muitos destacam a coragem de José e Nicodemos, especialmente em contraste com o medo demonstrado pelos demais discípulos. Esses dois homens, membros do Sinédrio judeu, não hesitaram em pedir ao governador romano, Pilatos, permissão para sepultar o “Rei dos Judeus” e obtiveram sua autorização.

O cuidado que José demonstrou pelo corpo de Cristo foi, por si só, uma confissão da fé na ressurreição dos mortos. Da mesma forma, os corpos dos santos não são restos a serem descartados, mas verdadeiras relíquias sagradas, aguardando a gloriosa ressurreição.

Ao lembrarmos de José e de seu serviço prestado ao corpo do Senhor, também recordamos que nós, cristãos, recebemos o chamado de honrar os corpos daqueles que morreram em Cristo. Confessamos diante de um mundo incrédulo que esses corpos devem ser tratados com respeito, porque, unidos a Cristo, serão ressuscitados em glória no Último Dia, quando nosso Senhor aparecer novamente, ressuscitar todos os mortos e conceder a vida eterna a todos os que creem nEle.

ORAÇÃO DO DIA
Misericordioso Deus, teu servo José de Arimateia preparou o corpo de nosso Senhor e Salvador para o sepultamento com reverência e temor a Deus e o depositou em seu próprio túmulo. Ao seguirmos o exemplo de José, concede a nós, teu povo fiel, a mesma graça e coragem para amar e servir a Jesus com devoção sincera todos os dias de nossas vidas; através de Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém

Traduzido e Adaptado de WEEDON, William. Celebrating the Saints (Concordia Publishing House, 2016).

terça-feira, 29 de julho de 2025

Podemos cantar o Sanctus, por favor?

Uma prática não incomum durante o Serviço do Sacramento em algumas congregações da LCMS (e também na IELB) é a omissão do Prefácio, do Prefácio Próprio e do Sanctus. Numa tentativa de abreviar o culto (mesmo que minimamente, diga-se de passagem), a ordem resultante geralmente é algo como: sermão, ofertas, orações, Pai Nosso e, em seguida, diretamente as Palavras da Instituição (Verba). Embora a transição seja certamente fluida, vale a pena refletir sobre o que se perde nesse processo.

O que se perde não é nada menos do que algumas das partes mais antigas do Culto Divino. O diálogo de abertura do Prefácio, por exemplo, remonta à Tradição Apostólica do início do terceiro século, com a implicação de que já era usado bem antes disso. Esse diálogo, que nos convida a elevar nossa mente às coisas do alto (Colossenses 3.1) enquanto começamos nossa ação de graças pelas ricas bênçãos do Senhor neste Sacramento (Santa Ceia), logo se tornou o início fixo do Serviço do Sacramento (Liturgia da Santa Ceia) tanto no Oriente quanto no Ocidente. Cerca de um século depois, sua ampliação já estava firmemente estabelecida em todo o mundo mediterrâneo, com muitos dos ritos antigos literalmente se atropelando em ações de graças a Deus: 

“É verdadeiramente digno e justo, conveniente e proveitoso, louvar-te, [entoar-te hinos,] bendizer-te, adorar-te, glorificar-te, dar-te graças.”[1] 

O ponto enfatizado em todos esses ritos antigos é claro: não há resposta mais apropriada à misericórdia que Deus nos mostra nesta santa ceia do que reconhecer que tal ação de graças é de fato digna em todos os tempos e lugares.

Claro, há mais. Por meio do Prefácio Próprio, ouvimos — em pequenos trechos distribuídos ao longo do Ano da Igreja — os feitos salvadores de Cristo, tudo o que ele realizou por nós. E então, com grande solenidade, o Prefácio conclui com aquelas palavras familiares (“por isso com anjos e arcanjos...”), que reconhecem uma realidade acessível apenas pela fé — a saber, que nós, reunidos aqui, seja uma congregação de centenas ou apenas alguns fiéis, não estamos sozinhos em nossa ação de graças. Pelo contrário, é a verdade inabalável de que nossas vozes se unem ao grande coral de santos e anjos que habitam na presença mais próxima de Cristo. Em nenhum outro momento do culto esse mistério é tão claramente reconhecido ou tão eloquentemente expresso.

O que é que então dizemos com essa grandiosa companhia celestial? É o “Santo, Santo, Santo” dos anjos reunidos ao redor do trono de Deus (Isaías 6.3; Apocalipse 4.8); à sua incessante adoração de Deus unimos nossas vozes por esse breve momento. Diferente dos antigos israelitas, que eram instruídos a buscar a glória do Senhor num lugar específico (isto é, o propiciatório sobre a arca da aliança), reconhecemos que a glória do Senhor agora se manifesta em todo lugar onde o seu mandamento de comer e beber de sua carne e sangue é fielmente cumprido. Por isso, nós o aclamamos com clamores de súplica (“Hosana!”), confiantes de que aquele que entra em nosso meio por meio dos humildes sinais do pão e do vinho traz vida e salvação. Bendito, de fato, é ele!

Se, por questão de tempo, for necessário encurtar o Culto, que não seja o Prefácio e o Sanctus que sofram esse corte. Despedimo-nos do hino final, que nem sequer está listado como parte obrigatória do culto, ou do hino de invocação, que aparece apenas sob uma rubrica opcional. Corte os noventa segundos do sermão ou das orações, se for preciso. Mas não prive os fiéis deste momento sublime, quando suas vozes se unem à companhia celestial para reconhecer o Senhor que está em seu meio.

GRIME, Paul J. May we sing the Sanctus, please?. Concordia Theological Quarterly, Fort Wayne, IN, v. 84, n. 3–4, p. 363–368, jul./out. 2020. Tradução de Filipe Schuambach Lopes.


[1] “Liturgia de São Tiago”, em R. C. D. Jasper and G. J. Cuming, Prayers of the Eucharist: Early and Reformed, 3rd ed. (Collegeville, MN: Liturgical Press, 1987), 90. Observe-se a semelhança dessas palavras com as do Gloria in Excelsis, que também tem origem oriental dessa mesma época.

Comemoração de Maria, Marta e Lázaro de Betânia - 29 de julho


Hoje lembramos três amigos de Jesus: Maria, Marta e Lázaro de Betânia.

Imagine como deve ter sido difícil para elas: um atraso que parecia sem explicação. Maria e Marta mandaram avisar Jesus que Lázaro estava doente, pois sabiam que uma palavra de Jesus podia curar qualquer enfermidade e afastar até a morte (João 11.1–3).

Mas o tempo passou e Jesus não respondeu. Ele não apareceu. Silêncio. E, enquanto isso, o irmão delas piorava diante de seus olhos, até que morreu. Lázaro fechou os olhos e parou de respirar. Seus corações se partiram. E Jesus ainda não tinha vindo (João 11.6).

Elas o prepararam para o sepultamento com todo carinho, envolveram seu corpo em faixas e o colocaram no túmulo. A cidade participou do funeral. A pedra foi colocada na entrada. A escuridão tomou conta do túmulo... e dos corações das irmãs. Lázaro estava morto. E Jesus ainda não tinha chegado.

No meio do luto, as perguntas começaram a brotar: “Por que Ele não veio? Será que ele não se importa mais? Será que fizemos algo errado?” Maria, que tantas vezes havia sentado aos pés de Jesus para ouvir sua Palavra (Lucas 10.39), se agarrava agora às promessas do amor do Pai. Marta, por sua vez, continuava se ocupando, tentando lidar com a dor.

Então, alguém avisou: “Jesus está vindo.” Marta correu para encontrá-lo. E desabafou:
“Se o Senhor estivesse aqui, o meu irmão não teria morrido. Mas também sei que, mesmo agora, tudo o que o senhor pedir a Deus, ele concederá.
Jesus disse a ela:
— O seu irmão há de ressurgir.
Ao que Marta respondeu:
— Eu sei que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia.
Então Jesus declarou:
— Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
(João 11.21–25)
Depois, Maria também se aproximou de Jesus. Ao ver o sofrimento dela, Jesus se comoveu profundamente. Ele chorou (João 11.35). Foram juntos ao túmulo. E lá, diante de todos, Jesus ordenou: “Lázaro, venha para fora!” E Lázaro saiu. Não um fantasma ou um morto-vivo, mas uma pessoa viva, que havia sido chamada de volta à vida pela voz do Filho de Deus (João 11.43–44).

Mas por que esse atraso? Por que Jesus não foi direto curá-lo? A resposta de Jesus é esta:
“Essa doença não é para morte, mas para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado por meio dela.” (João 11.4)
Jesus realmente amava aqueles três irmãos (João 11.5). E ele também ama você. Mesmo quando as situações parecem sem saída, mesmo quando as orações parecem não ter resposta, podemos confiar: ele vê, ele se importa e está agindo com propósito. Às vezes, o milagre vem depois da espera. Às vezes, a cruz vem antes da ressurreição. Mas a presença de Jesus, Aquele que é a ressurreição e a vida, é o que nos dá verdadeira paz (João 14.27).

Lázaro é uma pequena amostra do que acontecerá com todos os que creem em Cristo:
“Vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a voz dele e sairão” (João 5.28–29)
A ressurreição no último dia é certa. Mas até lá, você tem em Jesus um amigo fiel, que chora com você, caminha ao seu lado e vai, um dia, te chamar pelo nome para a vida eterna.

ORAÇÃO DO DIA
Pai Celestial, teu amado Filho fez amizade com seres humanos frágeis como nós para torná-los teus amigos. Ensina-nos a ser como os queridos amigos de Jesus de Betânia, para que possamos servi-lo fielmente como Marta, aprendermos sinceramente com ele como Maria e, finalmente, sermos ressuscitados por ele como Lázaro. Através de Jesus Cristo, Senhor deles e nosso, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.

Traduzido e Adaptado de WEEDON, William. Celebrating the Saints (Concordia Publishing House, 2016)

A fundação da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) - OS PRIMEIROS 10 ANOS DE UM NOVO DISTRITO SINODAL: 1904–1914


📖 Este é o último post da nossa série contando a história da fundação
da Igreja Evangélica Luterana do Brasil.
Através dessas publicações, revisitamos o início da missão luterana no Sul do Brasil, os desafios enfrentados pelos primeiros missionários e a fidelidade que marcou a pregação da Palavra e a formação das primeiras comunidades.

Que essa história inspire gratidão a Deus e renovado compromisso com a missão da nossa igreja hoje.
Agradecemos a todos que acompanharam! Que o Senhor continue abençoando a IELB! 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A fundação da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) - O COMEÇO: 1900-1904


📖 Continuamos a contar a história da IELB…
Dando sequência à série de publicações sobre as origens da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, compartilhamos hoje mais um trecho do livro “Um Grão de Mostarda: a história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil”, volume 1, escrito por Mário L. Rehfeldt.

Este trecho relata os desafios e os primeiros passos da missão luterana no sul do Brasil, especialmente o trabalho do pastor Broders e do diretor de missões Wilhelm Mahler. Uma história de fé, perseverança e dedicação ao Evangelho.

Boa leitura!

segunda-feira, 23 de junho de 2025

A fundação da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) - O Pano de Fundo


Em alusão ao aniversário de 121 anos da IELB, celebrado neste dia 24 de junho
, queremos compartilhar com vocês um trecho especial do livro "Um grão de mostarda: a história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil", Volume 1, escrito por Mário L. Rehfeldt.

Neste primeiro post, nosso objetivo é apresentar o pano de fundo histórico e religioso que preparou o caminho para o surgimento da IELB. Ao compreendermos o contexto em que nossos antepassados viviam e os desafios enfrentados, conseguimos valorizar ainda mais a graça de Deus que sustentou essa semente de fé que cresceu e floresceu até os nossos dias