sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

O Altar não é um palco—é onde o Céu toca a terra!

Em um mundo obcecado por performance—luzes, câmeras e aplausos—é fácil interpretar mal o altar. Mas o altar não é um palco; é o lugar onde o céu encontra a terra.

Pense nisso: um palco serve para entretenimento. Atores se apresentam, a plateia assiste e, quando a cortina se fecha, tudo acaba. Mas um altar é diferente. É um lugar de encontro, onde recebemos os benefícios do santo sacrifício de Cristo por nós. Nele, Cristo nos dá si mesmo na Santa Ceia (João 6.53–56), e é também onde oferecemos nosso louvor e ações de graças.

Desde os primeiros dias do cristianismo, os cristãos compreendiam a importância do altar. Santo Inácio de Antioquia (século I) enfatizou a necessidade de se reunir ao redor do altar com o bispo e os sacerdotes, chamando-o de centro da unidade. São Justino Mártir (século II) descreveu como os cristãos se reuniam para celebrar a Santa Ceia (Eucaristia) ao redor do altar, oferecendo orações por todos.

Por quê? Porque, em cada culto, o sacrifício de Cristo no Calvário se torna presente para nós novamente—não o crucificando outra vez, mas tornando presente aquela única e eterna oferta (Hebreus 9.26). É no altar que o comum—pão e vinho—se une ao extraordinário: o Corpo e o Sangue do nosso Salvador.
“De fato, não temos aqui cidade permanente,mas buscamos a que há de vir.” — Hebreus 13.14
É isso que acontece no altar: vislumbramos essa “cidade que há de vir”. O véu se levanta, ainda que por um instante, e nos unimos aos anjos e àqueles que partiram em Cristo, em uma única adoração (Apocalipse 5.11–13). Não se trata de uma performance. É um convite divino para entrar na presença do Rei.

Então, da próxima vez que você for ao culto, lembre-se: aquela estrutura de mármore ou madeira à frente não é uma plataforma para espetáculo. É o ponto central da nossa fé, o lugar onde o temporal e o eterno se encontram. Sem ingresso, sem show— apenas o lugar onde Cristo nos serve com seus dons, conectando-nos ao céu por meio da sua Palavra e Sacramento.

Traduzido e adaptado de The Altar Isn’t a Stage—It’s Where Heaven Touches Earth. Ecclesiastical Sewing.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O Sinal da Cruz: Um breve incentivo para os luteranos e para qualquer pessoa interessada

Hoje em dia, quando alguém é acusado de estar apenas “fazendo por fazer”, isso raramente é um elogio. Muitas pessoas acreditam que ser autêntico e espiritual significa ir além do que é apenas físico. No entanto, dentro da tradição cristã, há uma oração simples e antiga que exige justamente isso: um gesto físico. O culto cristão possui uma dimensão corporal muito rica, pois envolve mais do que apenas o coração, a mente, a leitura ou a fala. Ele abrange o corpo inteiro, que foi criado e redimido por Deus.

Por isso, faça o Sinal da Cruz com confiança. Esse gesto expressa a unidade do ser humano como corpo e alma. Além disso, ele testemunha de forma silenciosa para sua família, amigos, colegas e até para desconhecidos que a cruz de Cristo é o centro da sua fé e vida. Mas, acima de tudo, essa mensagem é para quem mais precisa ouvi-la: você mesmo. O Sinal da Cruz nos lembra do que realmente importa e, ao senti-lo em nossa própria pele, essa lembrança se torna ainda mais concreta. Uma prática significativa é tocar a água da pia batismal ao entrar na igreja antes de fazer o Sinal da Cruz.

Talvez alguém argumente: “Mas o Sinal da Cruz não faz parte da minha tradição. Nunca vi isso em minha casa ou na minha igreja, meu pastor nunca mencionou e meus pais nunca me ensinaram.” Na realidade, o Sinal da Cruz faz parte da tradição luterana de várias maneiras.

Primeiro, ele pertence à tradição cristã ocidental, da qual os luteranos fazem parte. Como confessamos na Confissão de Augsburgo:
“Ainda assim, entre nós os ritos antigos são em grande parte diligentemente observados. É, portanto, calúnia desleal dizer que, em nossas igrejas, foram abolidas todas as cerimônias e todas as instituições antigas” (Confissão de Augsburgo, Art. XXI).
E também:
“Nada contribui mais para a conservação da dignidade das cerimônias e para o crescimento da reverência e da piedade entre o povo do que a observância regular das cerimônias nas igrejas” (Confissão de Augsburgo, Art. XXI.

Segundo, no Batismo, o Sinal da Cruz foi feito sobre você, marcando-o como pertencente a Cristo para toda a vida.

Terceiro, mesmo que seu professor de catecismo não tenha mencionado essa prática, Martinho Lutero a incluiu no Catecismo Menor:
“De manhã, ao sair da cama, faça o sinal da santa cruz e diga: ‘Que Deus Pai, Filho e Espírito Santo me guarde. Amém’”.
E novamente:

“À noite, quando você vai para a cama, faça o sinal da santa cruz e diga: ‘Que Deus Pai, Filho e Espírito Santo me guarde. Amém’”.

Se você é luterano, o Catecismo Menor faz parte da sua herança, e, portanto, o Sinal da Cruz também.

As orações mais simples costumam ser as mais ricas. O Sinal da Cruz pode ser a oração mais profunda de todas, pois não precisa nem de palavras. Normalmente, ele é acompanhado pela invocação trinitária (“Em nome do Pai e do + Filho e do Espírito Santo”) que, embora breve, carrega um significado imenso. Fazer o Sinal da Cruz com atenção e devoção nos conecta ao nosso Batismo, quando Cristo nos purificou do pecado pelas mãos do pastor, “em nome do Pai e do + Filho e do Espírito Santo.” Cada vez que repetimos esse gesto, nos lembramos das promessas do Batismo.

Esse gesto também nos lembra da Absolvição, quando ouvimos as palavras: “vos perdoo todos os vossos pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Além disso, reforça que pertencemos a Jesus, cuja redenção cobre todo o nosso ser e molda nossa vida pela sua santa Cruz.

Por isso, o Sinal da Cruz é um hábito precioso na vida de oração. Ele pode ser um clamor pelo auxílio e proteção de Deus em momentos difíceis. Também é um ato de gratidão e alegria em momentos de celebração. E, mesmo quando você não sente nada de especial, esse gesto pode ajudar a unir seu corpo e sua mente em oração e devoção.

O Sinal da Cruz pode parecer simples, mas é rico no seu significado. Em um único gesto, expressamos tantas verdades que seria impossível mencioná-las todas em palavras a cada vez que o fazemos. Ele é como uma aliança de casamento: ao tocar nela, meio que sem perceber, um homem lembra de sua relação com sua esposa. Da mesma forma, o Sinal da Cruz nos lembra que pertencemos a Cristo, que somos parte da Igreja e que temos um Salvador que nos marcou como Seus.

Esse gesto também é como uma armadura invisível que os cristãos vestem ao sair para enfrentar o mundo. Ele nos lembra que devemos ser fortes e corajosos, assim como São Policarpo ouviu quando foi levado ao martírio no século II: "Seja forte e aja como homem." Em Cristo temos nossa identidade, e n'Ele encontramos força e coragem para resistir ao mal. Em Cristo podemos enfrentar qualquer desafio.

Sabemos que o Batismo significa que o velho homem em nós deve morrer todos os dias, junto com seus pecados e desejos maus, para que um novo homem surja e viva em justiça diante de Deus. O Sinal da Cruz pode ser um grande auxílio nessa luta diária de arrependimento e renovação. Ele nos lembra que a cruz representa o sofrimento redentor de Cristo, mas também aponta para a ressurreição.

Quando não souber o que dizer, ou quando houver tanto a dizer que as palavras falham, simplesmente faça o Sinal da Cruz e siga seu dia com alegria.

GABA, Latif. The Sign of the Cross. Gottesdienst, 26 fev. 2025. Disponível em: https://www.gottesdienst.org/gottesblog/2025/2/26/the-sign-of-the-cross.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Hino para a Imposição das Cinzas


Compartilho uma opção de hino para o momento da imposição de cinzas no culto de Quarta-feira de Cinzas, escrito pelo Rev. André Felipe dos Santos Silva, pastor na Paróquia de Santo Antônio da Patrulha - RS.

Este hino pode ser utilizado durante o rito da imposição das cinzas como um momento de reflexão e oração, reforçando a mensagem de arrependimento e confiança na graça de Deus neste início do período quaresmal.

CRUZ DE CINZAS

1. Cruz de cinzas marcam frontes
é lembrança de onde vim
e o destino que me aguarda,
ao deixar o mundo aqui.
Cruz maior é a de Cristo
que levou, tão grande amor!
Esperança que se acende,
estarei com meu Senhor.

2. Dos pecados que carrego,
devo me arrepender,
pois a graça já foi dada,
mesmo sem eu merecer.
Ó, cristãos, andai na vida
que Jesus nos conquistou.
Estas cinzas que carrego
representam quem eu sou.

3. Mesmo assim, fui muito amado
pelo que Deus que me escolheu.
Mãos e pés foram furados
a pagar por erros meus.
Vamos juntos nesta lida
celebrar o seu amor,
que na Cruz foi revelado
Deus se fez meu Redentor.

CRUZ DE CINZAS
Letra: André Felipe dos Santos Silva, 2024.
Melodia: O MEIN JESU, ICH MUSS STERBEN - 87 87 D (HL 90)


Outros hinos do Hinário Lutero com melodias compatíveis com a letra:
  • Abbot's Leigh – HL 279
  • Adeus – HL 1
  • Baltimore – HL 469, 475, 537
  • Beach Spring – HL 398
  • Converse – HL 293
  • Deerhurst – HL 151
  • Ebenezer – HL 298
  • Galilean – HL 68, 155, 394
  • Geneva (Day) – HL 29
  • Hyfrydol – HL 270, 531
  • Hymn To Joy – HL 189
  • In Babilone – HL 190-I, 228, 504
  • Lord, Revive Us – HL 408
  • Nettleton – HL 379-II
  • O Du Liebe Meiner Liebe – HL 86, 321, 328
  • O Durchbrecher – HL186, 300, 397
  • O Mein Jesu, Ich Muss Sterben – HL 44, 90, 282, 345, 516
  • Rex Gloriae – HL 379-I
  • Rustington – HL 121, 393, 474
  • Seraphim – HL 406
  • St. Gall – HL 242
  • St. Hilary – HL 425
  • Tack O Gud – HL 222
  • Vesper Hymn – HL 503
  • Weisst Du, Wieviel – HL 466

Opções litúrgicas para a Quarta-feira de Cinzas


No próximo dia 05 de março, a Igreja inicia um novo tempo litúrgico: o Tempo da Páscoa. Dentro desse ciclo, a Quarta-feira de Cinzas marca o início da Quaresma, um período de 40 dias de preparação para a celebração da ressurreição de Cristo. Esse tempo convida os cristãos ao arrependimento, oração, jejum e renovação espiritual, seguindo o exemplo de nosso Senhor, que passou quarenta dias no deserto antes de iniciar seu ministério (Mateus 4.1-11).

A Quarta-feira de Cinzas nos traz duas palavras fundamentais: "Lembre-se" e "Retorne". Lembramos de nossa fragilidade humana ao ouvirmos as palavras: "Lembra-te que és pó e ao pó voltarás" (Gênesis 3.19). Mas também somos chamados a retornar ao Senhor, pois "Ele é bondoso e compassivo, tardio em irar-se e grande em misericórdia" (Joel 2.13). Este é um tempo para aprofundarmos nossa fé, nos voltarmos para Deus em arrependimento sincero e prepararmos nossos corações para a grande festa da Páscoa.

Para esse momento litúrgico, estou disponibilizando três opções de liturgia para a imposição das cinzas, além de um rito para a queima dos ramos, que pode ser realizado na véspera ou antes da celebração:

  1. A primeira opção é uma tradução da liturgia presente no Lutheran Service Book (LSB - LCMS).
  2. A segunda opção é uma adaptação dessa mesma liturgia, feita pelo Rev. Moacyr Alves, oferecendo uma abordagem pastoral contextualizada.
  3. A terceira opção é uma liturgia compilada pelo falecido Rev. Dr. Paulo Pietzsch, que foi celebrada na Comunidade São João Batista de São Leopoldo - RS em 26/02/2020.
  4. Além disso, trago um rito especial para a queima dos ramos, que pode ser utilizado para a preparação das cinzas.

Essas liturgias podem ser acessadas através do seguinte link:

Que este tempo de Quaresma seja uma oportunidade para crescermos na fé, vivermos em arrependimento e confiarmos na promessa da ressurreição que temos em Cristo!

Hino para a festa da Transfiguração do Senhor


As igrejas que seguem o sistema trienal celebrarão, no próximo domingo, dia 2 de março, a Festa da Transfiguração do Senhor. Para essa ocasião, estamos disponibilizando a tradução do hino "Alto en el Monte", do Himnario Luterano 448.


NO ALTO DO MONTE
1. No alto do monte, tu brilhaste,
qual sol perfeito, ó Senhor;
a tua glória revelaste
para os teus servos, por amor.
Os céus se abrem para ti,
caminho és, Senhor, aqui.

2. Moisés e Elias, ao teu lado,
testemunhavam tua lei;
pelos profetas proclamado,
Cristo, és Deus de tua grei.
Deixaste a glória divinal
por teu amor tão perenal.

3. Nuvem de luz o encobria,
o Santo Espírito de Deus;
dos céus, o Pai então dizia:
“Este é meu Filho dado aos seus.
Ouçam-no sempre com temor,
sigam seus passos com amor.”

4. Do alto do monte, então desceste
para o Calvário, ó Senhor;
nossos pecados carregaste
rumo à cruz – que grande horror!
Tu nos remiste, ó Jesus,
trazendo graça, amor e luz.

5. Por ti, ó Cristo, sou chamado
filho do Pai em plena luz;
somente em ti sou perdoado,
tua justiça me conduz.
A glória eterna hei de ver,
por tua graça e teu poder.

ALTO EN EL MONTE – Himnario Luterano 448
Letra: Roberto Weber, 1990
Melodia: O Dass Ich Tausend - 98 98 88
Tradução: Filipe Schuambach Lopes
Revisão: Pedro Pinheiro

Hinos do Hinário Lutero com melodias compatíveis com a letra:
  • ICH STERBE TÄGLICH – HL 260, 281
  • O DASS ICH TAUSEND ZUNGEN HÄTTE
    • (Dretzel) – HL 244, 246, 318, 371, 454, 476
    • (König) – HL 174, 223, 239, 366, 467
  • WER NUR DEN LIEBEN GOTT – HL 356, 418, 507
  • WER WEISS, WIE NAHE – HL 390, 517, 519, 543

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O Culto Luterano - Parte I

Culto e rededicação na Igreja Luterana Redentor, Balboa, Cidade do Panamá, Panamá.

Todos nós temos motivos para participar do culto. Pode ser para agradecer a Deus pelo que ele fez em nossas vidas, para ter comunhão com outros irmãos na fé ou simplesmente porque sabemos que é o certo a fazer. Mas, acima de tudo, o culto é o momento em que a Igreja do Senhor se reúne para receber seus dons por meio da Palavra e do Sacramento. O ensino luterano, baseado na Bíblia, diz que a Igreja é “a congregação dos santos, na qual o evangelho é ensinado corretamente, e os sacramentos são administrados corretamente” (Confissão de Augsburgo VII).

A natureza de Deus é de entregar, e ele nos visita no culto para nos entregar o maior de todos os seus presentes: seu Filho, Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou por nós. O perdão, a vida e a salvação que Jesus conquistou para nós na cruz são entregues por meio da Palavra, ou seja, na absolvição, na pregação e na Santa Ceia. Nós recebemos esses dons maravilhosos de Deus porque eles nos mantêm seguros em seu cuidado e nos fortalecem para continuar nossa vida aqui na terra.

Deus nos dá um tempo de descanso do nosso trabalho diário para que possamos receber gratuitamente esses presentes. Jesus é o nosso verdadeiro descanso, como ele mesmo diz: “Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e eu os aliviarei.” (Mateus 11.28)

No culto, Deus nos dá esse descanso, pois não precisamos fazer nada para merecer o que ele nos oferece. Ele nos dá de graça aquilo que Jesus conquistou com seu próprio descanso no túmulo no sétimo dia. Esse descanso nos é entregue no altar, no púlpito e na pia batismal.

Seja qual for seu motivo pessoal para vir ao culto, o culto sempre será sobre Deus servindo você. Por isso chamamos de Culto (Serviço) Divino: Deus, com sua graça, nos dá uma nova vida nEle, renovando-nos vez após vez. Ele nos enche com sua bondade, que transborda para os outros e nos fortalece para mais uma semana no mundo.

+ Rev. Filipe Schuambach Lopes.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Café com Deus Pai: por que um luterano deve evitá-lo?

O devocionário Café com Deus Pai virou uma verdadeira modinha. Muitos, inclusive luteranos, têm buscado adquiri-lo para suas devoções pessoais, acreditando que encontrarão ali uma reflexão diária edificante. No entanto, ele contém muitos erros, especialmente para um cristão luterano que busca um devocional centrado em Cristo e fundamentado nas Escrituras. A própria devoção de hoje, por exemplo, que vi nos stories de uma pessoa, deixa isso muito evidente.

A devoção de hoje, 18/02/25, intitulada “Um relacionamento sincero”, é baseada em Marcos 7.6 na versão NVI: “Ele respondeu: ‘Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim’.”

O devocionário comenta o texto da seguinte maneira:
“A passagem que abordamos revela a crítica de Jesus à hipocrisia dos fariseus, que, em vez de orientarem as pessoas a se aproximarem de Deus, impunham regras rigorosas, criando barreiras e empecilhos, acabando por afastar as pessoas do Pai. É crucial diferenciarmos religiosidade de espiritualidade. 
Enquanto a espiritualidade representa uma conexão genuína com Deus, a religiosidade tende a criar rótulos e padrões para essa conexão, muitas vezes resultando em uma separação, em vez de facilitar o relacionamento com Deus. Sempre que introduzimos rituais, regras ou padrões humanos como condição para a proximidade com Deus, construímos um sistema legalista que complica o relacionamento em vez de facilitá-lo.

Devemos compreender que a religiosidade é prejudicial nesse contexto, pois impõe rótulos e padrões, enquanto a Bíblia enfatiza a necessidade de um coração sincero para se relacionar com Deus. Diariamente, é essencial avaliar nosso vínculo com o Pai, pois a hipocrisia, que consiste em falar sem praticar, pode minar a autenticidade desse relacionamento.

Deus Pai deseja uma conexão pura e sincera conosco. Como uma conversa de pai e filho, sem a necessidade de rituais ou grandes formalidades, assim devemos ser com ele. Convido você a refletir sobre seu relacionamento com o Pai, pois muitas vezes, sem perceber, criamos barreiras e introduzimos formalidades onde deveria imperar o amor e a sinceridade. Ele está chamando você para uma conexão real e sincera, que supera toda e qualquer barreira. Aproveite este momento para conversar com Deus, abrindo seu coração, pois ele está à sua espera. Deus deseja tomar café com você.”
À primeira vista, essa devoção pode parecer piedosa e inspiradora. No entanto, quando analisada à luz da doutrina cristã confessional, percebemos sérios problemas teológicos que tornam esse devocionário perigoso para quem deseja crescer na fé verdadeira.

O primeiro problema é a tentativa de criar uma oposição entre religiosidade e espiritualidade. O devocionário sugere que a religiosidade impõe barreiras entre Deus e o homem, enquanto a espiritualidade é uma conexão livre e genuína. Esse discurso soa agradável ao ouvido moderno, mas é um erro teológico grave. A Escritura não faz essa separação artificial. A verdadeira fé, concedida por Deus, manifesta-se tanto internamente quanto externamente. Jesus não aboliu as práticas externas da fé, mas as corrigiu e restaurou conforme a vontade de Deus. A vida devocional, o culto, a oração, os sacramentos e o ensino da Palavra são parte essencial da vida cristã. A fé nunca é apenas um sentimento ou uma experiência interna, mas se expressa de forma concreta na vida do cristão. Quando o devocionário sugere que qualquer estrutura ou liturgia afasta de Deus, ele distorce a verdade bíblica e despreza os meios pelos quais Deus escolheu se revelar e agir.

A devoção também afirma que “sempre que introduzimos rituais, regras ou padrões humanos como condição para a proximidade com Deus, construímos um sistema legalista que complica o relacionamento em vez de facilitá-lo.” Esse tipo de pensamento reflete um antinomianismo, que rejeita qualquer forma de ordem e disciplina na fé cristã. No entanto, Deus estabeleceu ordem em sua Igreja. O próprio Jesus instituiu o Batismo e a Santa Ceia e participou de cultos litúrgicos. A Igreja Primitiva manteve uma ordem de culto (Atos 2.42), e o culto cristão sempre foi marcado pela proclamação da Palavra e pelo uso dos sacramentos.

A liturgia luterana, por exemplo, longe de ser uma barreira, é uma dádiva que nos aproxima de Cristo. O culto não é uma criação humana para alcançar Deus, mas sim o Serviço Divino (Gottesdienst), ou seja, é Deus que serve a nós! Nele, Cristo vem a nós da maneira mais amorosa, mais íntima, para nos socorrer, nos perdoar e nos fortalecer através dos meios da graça. Quando nos reunimos em culto, não estamos simplesmente participando de uma cerimônia religiosa qualquer, mas sendo encontrados por Cristo na Palavra, no perdão dos pecados, no Batismo e na Santa Ceia.

O primeiro passo que devemos dar em nossa vida devocional, religiosa, espiritual ou qualquer outro termo que se queira usar, é reconhecer que somos pecadores, estamos perdidos e necessitamos de resgate. A obra de Cristo e a verdadeira devoção pressupõem que estamos sempre em erro e pecado. Quando perdemos essa perspectiva e a noção do peso do nosso pecado, nos tornamos entusiastas e começamos a pensar que podemos atingir a santidade por conta própria.

Essa ideia de que Deus se agrada apenas da sinceridade interna, sem considerar o culto e as práticas externas, entra em contradição com a Escritura. O Salmo 51.17 diz: “Sacrifício agradável a Deus é o espírito quebrantado; coração quebrantado e contrito, não o desprezarás, ó Deus.” Essa mensagem se alinha com as palavras de Jesus em Marcos 7.6-7, onde ele repreende aqueles que honram a Deus apenas com os lábios, mas têm um coração distante d’Ele.

Se fizermos uma análise, veremos que a lógica por trás das devoções do Café com Deus Pai é a de que não precisamos de resgate do pecado, mas apenas de uma correção na experiência da fé. Isso distorce completamente o Evangelho. Além disso, é impossível acessar o Pai sem Cristo, como ele mesmo declarou: “Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14.6).

A verdadeira espiritualidade não está em uma experiência emocional subjetiva ou em um relacionamento sem estrutura com Deus, mas sim naquilo que ele mesmo instituiu para nos alimentar espiritualmente. A fé cristã, conforme revelada na Escritura, engloba tanto a crença (fides qua) quanto sua expressão externa (fides quae), e ambas caminham juntas sob a direção da Palavra de Deus. O culto cristão, conforme a tradição luterana, não é uma tentativa humana de nos aproximarmos de Deus por meio de rituais vazios, mas sim a resposta de fé ao chamado de Deus para recebermos seus dons. No culto, Deus fala e nós respondemos; ele concede perdão e nós o recebemos; somos alimentados com o Corpo e o Sangue de Cristo e fortalecidos na fé. Desprezar essa realidade e reduzir a vida cristã a um relacionamento informal e sem mediação sacramental é ignorar a forma como Deus age em sua Igreja.

Outro erro grave da devoção é a omissão completa da obra redentora de Cristo. O foco é totalmente colocado no coração humano e na necessidade de um relacionamento sincero com Deus, mas não há qualquer menção à cruz, ao perdão dos pecados ou à justificação pela fé. Isso transforma o devocionário em um instrumento de moralismo disfarçado de espiritualidade, levando as pessoas a pensarem que podem se achegar a Deus apenas por um esforço sincero, em vez de dependerem exclusivamente da obra salvífica de Cristo.

A pergunta essencial que essa devoção ignora é: como podemos ter um coração sincero e puro diante de Deus? A resposta não está em nossa própria sinceridade, mas unicamente na justiça de Cristo, recebida pela fé (Romanos 3.28). Esse é o coração do Evangelho luterano. A Confissão de Augsburgo (CA IV) afirma de maneira clara:
“Ensina-se também entre nós que os homens não podem ser justificados diante de Deus por seus próprios méritos, obras ou satisfações, mas são justificados gratuitamente por causa de Cristo, mediante a fé, quando creem que são recebidos em graça e que os seus pecados são perdoados por causa de Cristo, o qual, pela sua morte, satisfez pelos nossos pecados. Deus imputa esta fé como justiça diante de si.”(CA IV, 1-3)
Portanto, o erro da devoção está em desviar o olhar de Cristo crucificado e ressurreto para a sinceridade e disposição do coração humano, algo que as Confissões Luteranas refutam com veemência. A Apologia da Confissão de Augsburgo (Apologia IV, 63-64) explica:
“Assim, a fé é o verdadeiro culto divino, pois recebe os benefícios oferecidos por Deus. O culto levítico não justificava, e as obras das leis morais não justificam sem Cristo. Por isso, no Novo Testamento, o verdadeiro culto que justifica é a fé.”
Sem a cruz, qualquer conversa sobre relacionamento com Deus se torna vazia e ineficaz, pois a verdadeira comunhão com Deus não se baseia em nossos sentimentos ou esforços, mas na graça de Cristo que nos é dada nos meios da graça. É pela Palavra, pelo Batismo e pela Santa Ceia que Cristo nos alcança e nos concede um relacionamento verdadeiro e salvador com o Pai. Sem essa centralidade na justificação pela fé, o devocionário propaga um cristianismo antropocêntrico, em que o ser humano tenta encontrar Deus por meio de sua sinceridade, em vez de descansar na certeza da salvação em Cristo.

Além disso, quando não há ordem e a Lei vindas de Deus, há sempre um moralismo entusiasta. Se não é Deus que me diz o que fazer, então sou eu que invento coisas para agradá-lo. Esse é o problema do farisaísmo. Os fariseus não tinham mais profetas para corrigi-los e, em vez de ouvirem a Palavra de Deus na Escritura, criaram leis da própria cabeça para agradar a Deus e "proteger" a fé. Isso não é diferente do que acontece em muitos meios religiosos contemporâneos que rejeitam a ordem e os meios estabelecidos por Deus para a comunhão com Ele, substituindo-os por experiências subjetivas e normas humanas. Como diz a Confissão de Augsburgo, no Artigo XXVIII, sobre o Poder da Igreja:
“Portanto, os bispos não devem instituir ou exigir tradições contrárias ao evangelho. Como está escrito: 'Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos humanos' (Mt 15.9). E: 'Por que tentais a Deus, impondo um jugo ao pescoço dos discípulos?' (At 15.10).” (CA XXVIII, 36-37)
Isso significa que não devemos criar nossas próprias regras para nos aproximarmos de Deus, mas devemos nos apegar aos meios da graça, onde Deus mesmo nos vem ao encontro. Quando se abandona essa verdade, há sempre uma tendência ao legalismo e ao moralismo, que busca estabelecer um relacionamento com Deus baseado em nossa sinceridade e desempenho pessoal, em vez da graça e da obra consumada de Cristo.

Por fim, o erro mais perigoso desse devocionário é a sua falta de clareza sobre quem é o Deus verdadeiro. Em momento algum o devocionário menciona o Filho e o Espírito Santo. Ele se refere apenas a “Deus Pai”, como se ele estivesse separado das demais Pessoas da Trindade. Isso pode levar a uma visão equivocada de Deus e até a um entendimento modalista da fé cristã. O Deus verdadeiro é Pai, Filho e Espírito Santo, e qualquer devoção que ignore essa realidade essencial corre o risco de apresentar um falso deus.

Diante de tudo isso, fica evidente que o Café com Deus Pai não é um devocionário adequado para um cristão luterano. Ele contém uma visão equivocada sobre a fé, minimiza a importância da doutrina e da liturgia, omite a obra redentora de Cristo e apresenta um conceito perigoso e reducionista de Deus. Para um crescimento espiritual saudável, é essencial buscar devocionários que sejam cristocêntricos, enraizados na Palavra de Deus e que nos conduzam aos meios da graça, pois é ali que Cristo verdadeiramente nos encontra.

Felizmente, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) disponibiliza um excelente devocionário, produzido pela Hora Luterana, chamado Cinco Minutos com Jesus. Esse devocionário diário oferece reflexões curtas, mas profundamente enraizadas na Escritura, sempre apontando para Cristo como nosso Redentor. Além disso, na Editora Concórdia, também está disponível o devocionário “Segue-me", que traz ótimas devoções baseadas no ano litúrgico da Igreja, ajudando os fiéis a acompanharem o calendário e os ensinamentos da fé cristã de forma sólida e edificante. Ambos são excelentes opções para quem deseja um devocional realmente bíblico e centrado na verdadeira fé cristã, sem cair em modismos ou em espiritualidades vazias.

Comemoração de Martinho Lutero, Doutor e Reformador da Igreja – 18 de fevereiro

 Hoje, a Igreja se alegra ao lembrar o bem-aventurado Martinho Lutero, Doutor e Confessor.

Os caminhos de Deus podem ser surpreendentes. Ele levou seu servo Martinho de volta ao ponto onde tudo começou. Lutero nasceu em Eisleben, em 1483, e foi lá também que passou seus últimos dias na terra, em fevereiro de 1546. Na época, os príncipes locais em disputa e buscaram a ajuda do grande Reformador para resolver a questão de maneira cristã e piedosa. Mesmo com a saúde bastante debilitada, Lutero não quis ignorar esse pedido. Jesus disse: "Bem-aventurados os pacificadores", e foi justamente em serviço da paz que Lutero partiu deste mundo. No início, ele acreditava que seria martirizado por sua ousada confissão e, às vezes, parecia até lamentar que o Senhor não lhe tivesse concedido essa graça.

Lutero gastou todas as suas forças ensinando, pregando e auxiliando na Reforma das igrejas. Depois que ele compreendeu que a justiça que Deus exige na Lei é, na verdade, um dom que Ele concede gratuitamente para ser recebido pela fé, Lutero se tornou imbatível. De sua pena fluíram palavras sem parar: ele traduziu as Escrituras dos idiomas originais para o alemão, inúmeros hinos, diversas revisões das liturgias da Igreja, coleções de sermões e comentários bíblicos. Seu conselho era buscado por pessoas de todos os lugares. Mas sua vida monástica anterior já tinha deixado marcas profundas em sua saúde. Seu entusiasmo pelo ascetismo afetou seu corpo desde cedo. Lutero nunca fez nada pela metade quando se tratava da fé – nem antes de conhecer a alegria do Evangelho, nem depois. E foi com um corpo já fragilizado que ele enfrentou o imenso desafio da Reforma. No entanto, para ele, não havia outra maneira de viver: gastar suas forças servindo a Deus era a única vida que valia a pena.

Nos seus últimos momentos, Lutero confessou seus pecados a Justus Jonas e recebeu a absolvição. Quando a morte se aproximava, Jonas perguntou se ele desejava partir firme na fé que sempre havia confessado. Com toda a convicção, Lutero respondeu em alto e bom som: "Ja!" ("Sim!"). Enquanto estava deitado, repetia para si mesmo algumas promessas das Escrituras. Quando, enfim, deu seu último suspiro, deixou este mundo com a plena certeza de que seus pecados foram perdoados pelo sangue de Cristo e que a morte foi vencida pelo sacrifício e ressurreição do Salvador. Lutero morreu sabendo que, embora fosse um pecador, tinha um Salvador poderoso. E esse Salvador não o abandonaria, mas o ressuscitaria em um corpo glorificado.

Depois de sua morte, seus amigos encontraram as últimas palavras que ele havia escrito: "Somos todos mendigos; isso é verdade." De fato, somos mendigos, mas diante de um Deus que se deleita em derramar Suas ricas bênçãos sobre pecadores indignos. Lutero partiu deste mundo sabendo que ajudou muitas pessoas a enxergarem e entenderem que "o justo viverá pela fé" – e foi imensamente grato por esse privilégio.

Oração do dia:
Ó Deus, nosso refúgio e nossa força, tu levantaste teu servo Martinho Lutero para reformar e renovar tua Igreja à luz da tua Palavra viva, Jesus Cristo, nosso Senhor. Defende e purifica a Igreja em nossos dias, e permite-nos proclamar corajosamente a fidelidade de Cristo até a morte e a ressurreição restituidora que deste a conhecer a teu servo Martinho; através de Jesus Cristo, nosso Salvador, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.

Fonte: WEEDON, William. Celebrating the Saints (Concordia Publishing House, 2016)


Quando Lutero faleceu em Eisleben, em 1546, o Eleitor João Frederico da Saxônia (que governou de 1532 a 1547) ordenou que seu corpo fosse transportado para Wittenberg e sepultado na Igreja do Castelo. O túmulo está localizado próximo ao púlpito, a cerca de 2 metros de profundidade no solo. Desde 1892, o local é marcado por um bloco de arenito em formato de túmulo, sobre o qual foi fixada uma pequena placa de bronze. Acredita-se que a Universidade tenha mandado fundir essa placa somente depois de 1560, em homenagem ao seu professor mais ilustre. A inscrição em latim diz:

"Aqui jaz o corpo de Martinho Lutero, Doutor em Sagrada Teologia. Ele faleceu no ano de Cristo de 1546, no dia 18 de fevereiro, em sua cidade natal, Eisleben, aos 63 anos, 2 meses e 10 dias de idade."

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O MINISTÉRIO E AS VESTES LITÚRGICAS

Ao longo da história cristã, o santo ministério e as vestes litúrgicas sempre tiveram um papel de grande importância na vida da Igreja. Desde os tempos apostólicos, a ordenação de ministros para a pregação do Evangelho e a administração dos sacramentos foi cuidadosamente preservada, e com ela veio também o uso de vestes que não apenas identificam o ofício pastoral, mas também apontam para sua seriedade e dignidade. No luteranismo, essa tradição não foi abolida, mas, ao contrário, foi mantida e compreendida à luz da centralidade do ministério da Palavra.

Martinho Lutero, reconhecendo a importância tanto do ofício ministerial quanto do uso adequado das vestes litúrgicas, comenta sobre esse tema em suas anotações à Epístola de Paulo a Tito, escritas em 1527. Ele destaca que o bispo é um ministro da Palavra, comparando-o a um administrador que foi chamado para distribuir os dons de Cristo – o Evangelho e os sacramentos – à Igreja. Além disso, ao falar da alba, Lutero ressalta que a pureza da vida ministerial deve estar acima de qualquer reprovação, e que as vestes do clero, embora diferentes das do sacerdócio levítico, continuam a desempenhar um papel significativo.

A seguir, apresentamos um trecho dessas anotações de Lutero, nas quais ele explica o significado das vestes do bispo e a seriedade de sua vocação como ministro da Palavra.

"Os adornos e as honrarias de Arão e de seus filhos têm um fim. Aqui, são descritos os adornos dos sacerdotes do Novo Testamento. 'Se fosse livre', etc. Temos outro tipo de vestes por sermos sacerdotes diferentes. Este é o significado da alba: que o bispo seja puro diante do mundo, que não possa ser acusado de nada. Seguem, agora, várias preciosidades que queremos analisar. Aqui, chama-o de bispo, acima chamou-os de presbíteros. Por conseguinte, para Paulo, bispo e presbítero são a mesma coisa. O uso propalado do termo vai na direção contrária. Um bispo, isto é, um ministro da Palavra, deve fazer uso da alba, assim como o ministro de uma família. Cristo é o pai da família, o bispo, o ministro. Ele é o ecônomo em cujas mãos o Senhor entregou todas as coisas. Se o bispo pensa em sua vocação, ele constata que é bispo por um rito, por um oráculo e por ordem divina. Em segundo lugar, que ele tem em suas mãos as coisas e a propriedade de Cristo. Que coisas são essas? O Evangelho e os sacramentos. Ele foi constituído como ministro da Palavra para distribuir essas coisas à família, aos seus irmãos; ou seja, para pregar, diligentemente, o Evangelho e administrar os sacramentos, ensinar os ignorantes, exortar os doutos e castigar os desregrados, moderando-os, contendo-os pela Palavra e estando junto deles por meio das orações e dos sacramentos. Ele deve obter lucro, a fim de propagar e aumentar as posses de Cristo."

Martinho Lutero. Anotações de Lutero sobre a Epístola de Paulo a Tito in Obras Selecionadas, vol.10 p. 579-578.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Evangelismo e liturgia: uma oportunidade perdida

Trago uma tradução e adaptação de um texto muito oportuno do Rev. Larry Beane sobre evangelismo e liturgia. Este texto reflete sobre como a liturgia, por meio de suas cerimônias e práticas, é uma poderosa ferramenta de ensino e confissão da fé cristã.

Por Rev. Larry Beane 

As cerimônias ensinam. Primordialmente, elas ensinam o que é necessário saber sobre Cristo (CA 24.4). E fazem isso por meio de uma combinação de instrução verbal e não verbal. Da mesma forma que cônjuges e pais comunicam e expressam amor por suas famílias tanto com palavras quanto com gestos, a liturgia faz o mesmo: pelas palavras pronunciadas (que são a Palavra de Deus) e pela maneira física com que lidamos e reagimos a essa Palavra — ou seja, a confissão da nossa fé em ações.

Cerimônias ensinam por meio da confissão. Nosso ensino e confissão são recebidos tanto por crentes quanto por descrentes, por aqueles que confessam a fé conosco e por cristãos de outras tradições. Todos aprendem com a nossa liturgia, mesmo que seja apenas para compreender o que cremos.

O valor que atribuímos à Palavra de Deus é transmitido pelo cuidado e reverência com que a apresentamos. Cerimônias como pronunciar a Palavra de forma solene, levantar-se para o Evangelho ou realizar uma procissão com o livro do Evangelho ensinam sobre Cristo e confessam o que cremos sobre a santidade e primazia das Sagradas Escrituras.

Quando um presidente, um general ou um CEO decide falar pessoalmente, isso demonstra que sua mensagem é de grande relevância. Por outro lado, se ele permanece ausente e delega a comunicação a outros, transmite a impressão de que o conteúdo a ser compartilhado não é de suma importância. Da mesma forma, quando o próprio pastor é quem proclama as Escrituras — especialmente o Evangelho —, ele ensina à congregação que essas palavras são incomparáveis, dotadas de uma importância vital e uma urgência singular, pois nelas ouvimos a própria voz de Deus para o seu povo. Mas, se permitimos que qualquer pessoa proclame a Palavra — homens, mulheres, crianças, pessoas sem preparo adequado, vestidas de forma casual e que tratam o altar com pouca reverência —, isso transmite uma casualidade não intencional, em desacordo com a reverência luterana pela poderosa Palavra de Deus.

Quando pastores abandonam cerimônias na leitura do Evangelho, vestem-se de forma desleixada ou transformam a leitura num espetáculo, estão, na prática, igualando-a a uma letra de música popular ou a um roteiro de programa de TV, em vez da Palavra milagrosa de Deus.

O mesmo se aplica à celebração do Sacramento do Altar. O papel do pastor não é apenas pronunciar as palavras da instituição e distribuir os elementos. Isso é apenas parte da tarefa. Deve-se fazê-lo de modo a ensinar o que é necessário saber sobre Cristo e permitir que a congregação confesse sua fé também por meio de suas atitudes. Se o pastor trata a consagração com descaso, apressa-se nas palavras e não demonstra reverência em seus gestos, está transmitindo a ideia de que não cremos, de fato, na Presença Real.

Essa realidade é ilustrada por um exemplo pessoal: uma aluna brilhante, criada na fé luterana, ficou surpresa ao descobrir, em uma aula que confessamos a Presença Real. Ela pensava que os elementos eram apenas simbólicos. Acredito que seu pastor involuntariamente lhe ensinou isso de forma não verbal, mas ela “aprendeu” essa ideia por meio das práticas litúrgicas de sua congregação.

A casualidade no culto ensina — e confessa — algo contrário ao que professamos oficialmente. Esse é o motivo pelo qual um confirmando pode aprender todas as palavras corretas na sala de aula, mas concluir algo totalmente diferente ao observar a prática litúrgica (a teoria diferente da prática).

O culto litúrgico, com sua profundidade e reverência, pode ser uma poderosa ferramenta evangelística, especialmente em um mundo que busca o que é autêntico e significativo. Jovens, cansados da superficialidade da cultura contemporânea, vem buscando e encontrando na liturgia um convite ao sagrado, ao eterno e uma confissão profunda e histórica da fé na Palavra e no Sacramento, uma confissão reverente e litúrgica que não idolatra nem deixa de lado a tradição. A liturgia proclama o Evangelho não apenas com palavras, mas também com gestos, posturas e símbolos que testemunham a fé da Igreja.

Somos reverentes por causa da nossa confissão de fé e, ao mesmo tempo, desfrutamos da liberdade cristã que nos afasta de uma adoração marcada por um legalismo rígido. Temos, de fato, a liberdade celebrarmos culto em um ginásio, no capô de um jipe, em uma igreja bombardeada, em um salão de beleza, em um hospital, ou em qualquer outro lugar. Também somos livres para acolher variações na maneira como cada celebrante conduz o culto. No entanto, a pergunta que devemos nos fazer é: como estamos usando essa liberdade? Estamos realmente confessando nossa fé da melhor forma possível, com os recursos e oportunidades que temos?

Defendo que a liturgia é, de fato, evangelística — especialmente em nossos dias, quando muitos jovens buscam algo mais profundo e enraizado na tradição. Eles já estão imersos em superficialidade, cercados por uma vida virtual fragmentada e desconectada. Testemunharam a devastação de uma cultura sem Deus: marcada pela distorção da identidade, pelo narcisismo raso e por uma religiosidade neognóstica do tipo "faça você mesmo". A chamada adoração contemporânea, muitas vezes, nada mais é do que a acomodação e a inserção da própria cultura secular dentro do Lugar Santíssimo.

É por isso que considero a piedade litúrgica uma poderosa ferramenta evangelística: ela proclama o Evangelho de forma não verbal aos fiéis e confessa com clareza a verdade da fé cristã tanto aos descrentes quanto aos cristãos de outras tradições. Nossa confissão deve ser explícita e inequívoca, tanto no que ensinamos quanto na forma como adoramos. Afinal, as cerimônias ensinam. Elas falam, mesmo em silêncio, transmitindo o que cremos e confessamos.

Recentemente, uma jovem chamada Megan, se converteu ao luteranismo e se uniu a uma congregação da LCMS. Sua amiga e coapresentadora de um podcast no YouTube, Jacque — uma católica romana devota —, visitou a congregação de Megan para um culto e compartilhou suas impressões. Jacque concluiu que os luteranos não veem a Eucaristia como o clímax do culto e que a consagração não é enfatizada tanto quanto na Igreja Católica Romana. Ela descreveu a liturgia como “casual”, embora tenha admitido que não fosse exatamente essa a palavra que procurava. Ainda assim, essa foi a impressão predominante.

Deveria “casual” ser a impressão de alguém sobre a miraculosa Presença de Deus Encarnado em nosso meio na Palavra e no Sacramento? Os luteranos deveriam se envergonhar disso. E, como o podcast delas está disponível para qualquer pessoa no mundo, essa foi uma oportunidade perdida de evangelismo.

A impressão de Jacque de que a consagração é minimizada no luteranismo é, na verdade, o oposto. Os confessores luteranos enfatizavam a consagração em relação à Igreja Romana, pois é a Palavra — a verba Christi — que consagra os elementos, com a voz do pastor simplesmente repetindo as palavras de Jesus. Antes da Reforma (como ainda vemos na Missa Tridentina), as Palavras da Instituição eram inaudíveis. Os luteranos restauraram a verba — não apenas na língua vernácula, mas para ser ouvida distintamente pelo povo. Lutero instou o celebrante a falar — ou melhor ainda, cantar — a verba com clareza e reverência.

Ironicamente, quando luteranos “de uma certa idade”, que “foram luteranos a vida toda”, protestam dizendo que isso é “muito católico”, estão profundamente enganados. Esse foi um ajuste litúrgico contra Roma, que enfatizou, em vez de minimizar, a consagração.

Além disso, o hinário luterano inclui a rubrica do sinal da cruz duas vezes durante a consagração — uma vez para o pão/Corpo e outra para o vinho/Sangeu. Essas rubricas não estão lá para diminuir a importância da consagração, mas para reforçá-la. São gestos pastorais que confirmam as palavras do Senhor.

Minha prática como celebrante é tanto ajoelhar quanto elevar os elementos durante a consagração. Nunca celebrei de outra forma. Nos últimos anos, minha congregação também adicionou sinos de mão à cerimônia da consagração. Canto as Palavras da Instituição sem pressa, enfatizando deliberadamente a palavra “é” e desacelerando para destacar o que o “é” significa. Também usamos incenso em nossos cultos — não todas as semanas, mas o turíbulo está sempre presente no altar, próximo a um ícone com uma vela votiva.

Tendo em mente as limitações — tanto arquitetônicas quanto pastorais —, nós, pastores, devemos ser intencionais ao evangelizar e confessar não verbalmente. E os líderes leigos devem apoiar seus pastores quando surgirem críticas inevitáveis. Nossa teologia deve sustentar nossa prática, e nossa prática deve confessar nossa teologia.

E quando visitantes entrarem em nossos templos, deve estar claro o que cremos, ensinamos e confessamos — estejam eles interessados em se unir a nós ou não.

As cerimônias ensinam — e que elas ensinem com fidelidade aquilo que cremos, ensinamos e confessamos.